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Para governo Bolsonaro, garimpeiros e pecuaristas são povos tradicionais


“Garimpeiros são como gafanhotos famintos”, diz o sociólogo Luiz Antonio Nascimento, da Ufam, um dos críticos à sugestão de inclusão desses grupos no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Na imagem, acima garimpeiro no rio Juma, entre Apuí e Nova Apurinã no sul do Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Acervo Amazônia Real)

O governo Bolsonaro quer incluir garimpeiros e pecuaristas na lista de povos tradicionais. Essa pauta estava presente na 11ª reunião do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), colegiado consultivo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ficou decidido que no prazo de um ano um Grupo de Trabalho (GT) com os membros do conselho debaterão e, ao final, decidirão se os destruidores da Amazônia e de outros biomas serão considerados “povos tradicionais”. A simples inclusão desse assunto resultou numa chuva de críticas.


“Garimpeiros são como gafanhotos famintos, destroem tudo pela frente e em seguida vão para outro lugar”, resumiu o sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Luiz Antonio Nascimento. Os povos tradicionais são aqueles que vivem na e da terra há séculos, como ribeirinhos, caiçaras, caboclos, indígenas e quilombolas. “Estes usam as terras, os recursos naturais e o meio ambiente como um todo de forma sustentável”, acrescenta o sociólogo, para quem o garimpo é por natureza degradador e insustentável. “Não há um único lugar em que o garimpo deixou algo além de miséria, doenças e degradação social e ambiental.”


O CNPCT foi criado pelo Decreto n 8.750 de 9 de maio de 2016 e está presente na estrutura da Secretaria Nacional de Políticas da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta hoje comandada pela ministra Damares Alves. O conselho tem atribuição de fortalecer e garantir os direitos dos povos tradicionais, propondo conferências, coordenando, acompanhando e monitorando a

implementação e a regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Se forem considerados povos tradicionais, os pecuaristas e garimpeiros terão voz e poder de decisão dentro desse órgão.


A solicitação foi feita diretamente pelos garimpeiros e pecuaristas, fundamentada em pedidos de autodeterminação (eles se consideram “povos tradicionais”), à Seppir, que encaminhou a demanda para o CNPCT. No dia 20 de outubro, o GT foi discutido e aprovado em reunião ordinária. Em 8 de dezembro, foram nomeados os membros que comporão o grupo de trabalho.


O CNPCT divulgou uma nota explicando a situação. No documento, os conselheiros contam que “se deparam” com o que classificaram como “uma divulgação errônea de proposta de pauta que continham informações que ainda precisavam de aprimoramento prévio”, antes de ser divulgada. O primeiro dia da reunião foi no dia 7 de dezembro.


A pauta da reunião é costurada entre os membros do CNPCT e a Seppir, órgão governamental. No caso, o pedido específico para a inclusão dos garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais partiu da Secretaria do governo, segundo a nota. Os conselheiros haviam pedido a correção, por e-mail, um dia antes da reunião, no dia 6 de dezembro, e afirmam que nada foi feito, o que colaborou para “problemática criada por difusão de informações errôneas e inverídicas da pauta publicizada”.


Ainda de acordo com a nota, no dia 8 de dezembro, a reunião tratou da criação do GT para “discutir procedimento para reconhecimento de novos segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais – PCTs”. O documento narra que a sugestão da Seppir é que houvesse votação sobre as identidades, mas o entendimento dos conselheiros era que se ampliasse as discussões do autorreconhecimento a “partir de critérios e procedimentos para que todos os grupos tenham segurança, inclusive jurídica para esse processo”.


Houve discussões acerca da composição do GT, e o governo expressou que esta deveria ser paritária, embasado no decreto 9.759/2019. O conselho se posicionou ainda contra a destruição de territórios, o que acontece por meio de projetos “desenvolvimentistas muitos deles governamentais”, também contra mineração em territórios indígenas e em unidades de conservação e “contra quaisquer atividades que ameacem destruir o modo de vida e territórios tradicionais”.


Desconexão com a realidade


A imagem acima mostra pasto em área de grilagem no norte do Mato Grosso (Foto: Alberto César Araújo/Acervo Amazônia Real)

Agora o GT vai ouvir povos e comunidades tradicionais (PCTs), pesquisadores, antropólogos e instituições. Esse grupo é composto por quatro integrantes da sociedade civil, um do governo e convidados como MPF, Defensoria Pública da União e outros órgãos. A decisão sobre a inclusão dos garimpeiros e pecuaristas será apresentada em reunião do CNPCT em dezembro de 2022.

Para o professor da Ufam, esse gesto só pode ser entendido como “piada de mau gosto”. “Esse governo Bolsonaro é louco e criminoso e está fazendo de tudo para destruir tudo, e em especial terras indígenas, quilombos e Unidades de Conservação. E tem encontrado caixa de ressonância na mídia, quando ela não denuncia com dureza o que está em curso”, afirma.


“É mais um absurdo dessa criatura. Não há como a gente entender de outra forma. É uma total desconexão com a realidade, querer colocar como PCTs categorias que historicamente perseguem, matam e oprimem essa população”, desabafa Angela Mendes, filha do líder Chico Mendes. “É ultrajante, considerando que pecuaristas e garimpeiros, e muito mais garimpeiros, não se enquadram no que determina a Política Nacional de Desenvolvimento de Povos e Comunidades Tradicionais. É só buscar informações”, diz a tecnóloga em gestão ambiental.


O indigenista do Fórum da Amazônia Oriental (Faor) Marquinho Mota foi mais direto: “Isso aí é uma grande merda! Desculpa a expressão. Como é que garimpeiros e pecuaristas podem ser considerados povos tradicionais? É uma afronta a tudo que os povos tradicionais conquistaram até hoje, porque garimpeiros e pecuaristas são pessoas, agrupamentos, quadrilhas que atacam os povos tradicionais. Não têm como enquadrar esses caras como povos tradicionais. É um absurdo”, considerou.


O CNPCT é presidido por Carlos Alberto Pinto Santos Candidato, membro do Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos e Comunidades Tradicionais (Confrem). Ele informou que foi a “sociedade civil” no CNPCT que propôs a criação do GT e que agora esse processo seguirá ritos e procedimentos para o reconhecimento de novos grupos. “Isso nós conseguimos fazer, justamente para não ir direto analisar o caso de um Grupo A ou Grupo B”, disse.


“Optamos por seguir os preceitos que defendemos: consulta prévia, ampla, livre e informada, respeitando os direitos, a questão da identidade, da cultura, respeitando justamente aquilo que levou a gente a ter um conselho pelo qual lutamos tanto. Não vamos tratar de reconhecimento nenhum [no momento]”, adiantou Carlos Candidato.


Neutralização dos tradicionais


O historiador Juarez Silva Jr. vê a manobra para incluir garimpeiros e pecuaristas no hall dos povos tradicionais como uma tentativa de desvirtuar um conceito e, assim, “neutralizar” os verdadeiros povos e comunidades tradicionais nos seus direitos.


“A estratégia já foi utilizada há tempos aqui na região amazônica com a finalidade de ‘infiltrar’ de forma metarracista a luta negra e indígena não apenas na região, mas também em nível nacional como vimos no caso das cotas universitárias e demarcação da Terra indígena Raposa Serra do Sol”, explica. Ele lembra que um conceito e uma definição sobre os PCTs já são consagrados científica, social e politicamente, e essa inclusão vai contra o que é consagrado.


“Trocando em miúdos, é a atualização perfeita dos ditados populares: ‘botar a raposa tomando conta do galinheiro’ e ‘juntar alhos com bugalhos’. Isso será extremamente prejudicial aos verdadeiros PCTs, além de abrir ainda mais ‘legalidades’ para a ‘passagem da boiada’ antiambiental”, conclui.


A pesquisadora Elisa Wandelli faz um alerta ainda mais preocupante. “O pleito dos garimpeiros e dos pecuaristas é o que eles têm o direito de realizar. Qualquer grupo pode se considerar como tal, só que o conselho tem que avaliar para ver se aceita eles como parte de povos tradicionais e consequentemente ter direito a voz, voto e influência. E isso vai diminuir mais ainda a expressão, as demandas, os desejos dos povos tradicionais”, alertou.


Questão política

Balsas de garimpeiros no rio Madeira, em Autazes no Amazonas em novembro de 2021 (Foto: Bruno Kelly/Greenpeace)

No último mês, a crise no rio Madeira, quando centenas de balsas do garimpo ilegal formaram uma vila flutuante nas proximidades do município de Autazes (a 112 quilômetros de Manaus), causou danos para a imagem do Brasil perante a comunidade internacional. E, por parte do governo Bolsonaro, nenhuma palavra de condenação ou desestímulo à atividade. Mas não é apenas junto ao governo federal que os garimpeiros encontram força, como bem lembra o advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema).


“Há várias frentes formadas por parlamentares e prefeitos que vislumbram transformar o garimpo ilegal em atividade lícita. Recentemente, uma comitiva de prefeitos da região do Calha do Madeira (Amazonas) esteve em Brasília reivindicando apoio de deputados e senadores para que a atividade do garimpo seja ‘transformada’ em extrativismo mineral familiar. Importante destacar que atividade garimpeira tem sido responsável pela destruição de grandes extensões da Amazônia e resultado em violentos ataques contra povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos”, lembra Diogo Cabral.


No Amazonas, a defesa do garimpo também ganhou força na Assembleia Legislativa do Estado (Aleam), quando muitos parlamentares se manifestaram a favor do “destravamento” do setor, durante a crise no rio Madeira, quando a Polícia Federal, em operação, ateou fogo em balsas que faziam extração clandestina de ouro.


Os garimpeiros e pecuaristas

Garimpo do rio Juma entre Apuí e Novo Aripuanã, no Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Acervo Amazônia Real)

Fundador do Sindicato dos Garimpeiros do Estado de Roraima – o único no segmento atuando no Brasil -, Crisnell Ramalho conta que não conhece a fundo a proposta colocada em votação na reunião do CNPCT, mas faz questão de lembrar que a mineração é parte da história do País. “Sabemos que o comércio e a indústria brasileira começaram a se desenvolver através dos garimpeiros, tenho livros contando essa história, inclusive quando garimpeiro trabalhava no tempo da escravidão para o rei de Portugal”, diz Ramalho.


O sindicalista que fundou o sindicato de Roraima conta sobre as dificuldades que enfrenta com a própria categoria. “Os garimpeiros não querem sair do trabalho clandestino para trabalhar legalmente. Eu tenho como fundamento o objetivo de transformar o trabalhador garimpeiro em micro, pequeno e até um grande empresário da mineração para que ele recolha tributos, para questionar o governo federal e o Congresso a liberar áreas para garimpeiro trabalhar de forma legal, com projetos ambientais. Só que o garimpeiro não quer”, lamenta.


Já o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Amazonas (Faea), Muni Lourenço, disse não ser contra ou a favor da proposta de incluir pecuaristas como povos tradicionais, desde que a inclusão na categoria, respeite os ditames legais.

A Amazônia Real tentou contato com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, mas até o fechamento desta reportagem, o ministério não respondeu a solicitação. Caso o ministério retorne, a reportagem será atualizada.]


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