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Justiça manda iniciar estudos em terra indígena ameaçada por exploração de potássio, no Amazonas


Aldeias Soares e Urucurituba, localizada em Autazes, reivindicam demarcação há quase 20 anos. Lideranças do povo Mura dizem que são pressionadas por empresa de mineração. Na foto acima, o tuxaua Sérgio Nascimento, de Soares, em frente a uma área comprada pela Potássio do Brasil (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

A Justiça Federal do Amazonas determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) inicie estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Soares/Urucurituba, em Autazes, no Amazonas. O local é habitado por indígenas do povo Mura, que tentam desde 2003 ter o território reconhecido pela Funai, conforme a Amazônia Real revelou na reportagem especial “A Guerra do Potássio em Autazes”, publicada em março de 2022.


Em decisão do último dia 12, a juíza Jaiza Fraxe, atendendo ação do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, mandou a Funai constituir, em um prazo de 30 dias, um Grupo de Trabalho para a realização dos estudos. Caso a Funai não tenha servidores suficientes, o órgão indigenista deve contratar professores e especialistas com titulação e experiência comprovada em universidades federais. Jaiza Fraxe também determinou que o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do território indígena Soares/Urucurituba seja apresentado no prazo máximo de 180 dias a partir da intimação da decisão. Ela estabeleceu uma multa diária de R$ 1 mil para o caso de descumprimento.


A Terra Indígena Soares/Urucurituba foi autodemarcada em 2018 pelos indígenas Mura, após várias respostas incertas vindas da Funai. Mas, juridicamente, ela não é considerada terra indígena, apesar de seu direito originário, conforme consta na Constituição Federal de 1988. Sem a segurança da demarcação, o território viu-se ameaçado por invasões de não indígenas e, sobretudo, pelo projeto de exploração mineral da empresa Potássio do Brasil, que pertence ao banco canadense Forbes & Manhattan. A planta industrial do empreendimento está dentro de Soares e o porto de escoamento da silvinita (minério do qual se extrai o potássio) está previsto para ser construído a poucos metros de Urucurituba.


“Nunca foi tão urgente que o poder público defina os limites territoriais da ocupação Mura no Lago Soares, para fins de concretização de seus direitos preexistentes. O atraso na definição gera dano irreversível à União e prejudica tanto o povo originário quanto o prosseguimento do grande empreendimento”, diz trecho da decisão de Jaiza Fraxe.


Nesta quinta-feira (15), Admilson Pavão, tuxaua da aldeia Urucurituba, mostrou-se confiante. Ele se disse surpreso ao saber, pela reportagem, da decisão judicial. “Estou sabendo agora dessa notícia boa. Tomara que a Funai cumpra e a gente possa ter nossas terras delimitadas para sabermos qual é nossa área realmente. Os estudos agora vão mostrar, já que o que a gente fala não acreditam”, disse o tuxaua à Amazônia Real.

O tuxaua Admilson Pavão, da aldeia Urucurituba, do povo Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Admilson Pavão, cuja aldeia fica à margem do rio Madeira, em área pressionada por garimpo ilegal de ouro, disse que, com o território delimitado, “não haverá mais desculpa” para que empreendimentos sejam instalados no local. “Quero ver em que vão se apoiar. Se Deus quiser, vai dar tudo certo. A gente fica feliz com essa decisão”, afirmou.

As lideranças Mura de Soares e Urucurituba tentam há quase 20 anos a demarcação de seu território. Ao menos três vezes eles enviaram documentos à Funai solicitando o início dos estudos; a última vez, com data de dezembro de 2018. Naquele mesmo ano, eles finalizaram uma autodemarcação, com apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Nesse período, os Mura já presenciavam as perfurações e pesquisas da Potássio do Brasil dentro da comunidade Soares.


“Vimos um grande trânsito aqui dentro, de pessoas diferentes, de fora. Começaram a fazer perfurações. Era zoadeira de máquina, trânsito de lancha toda hora, noite e dia. A gente não conseguia dormir. Causaram acidentes, alagaram canoas. A gente não estava acostumado com isso”, disse à Amazônia Real o vice-tuxaua de Soares, Vavá Ezogue, em março deste ano.


Território remonta o século 19

Detalhe da placa do principal ponto de perfuração que foi feita pela empresa Potássio Brasil na comunidade Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Paralelamente, a empresa também ampliou sua atuação no território, comprando imóveis de indígenas e ribeirinhos que viviam no local. Um dos que venderam foi Jair dos Santos Ezogue, indígena Mura de 83 anos. “Me arrependi de ter vendido. Demais mesmo.

Conheço outras pessoas que venderam e tenho certeza que não vivem bem”, disse Jair, à reportagem. Após inspeção judicial realizada em Soares, Jaiza também conversou com o indígena Mura, atestando a frustração da liderança em ter vendido suas terras. (assista ao documentário “A Nova Guerra dos Mura”)


Jair dos Santos Ezogue, de 83 anos, é descendente de um dos fundadores da comunidade Soares. João Gabriel de Arcângelo Barbosa foi um indígena Mura que lutou na Cabanagem, no século 19, revolta popular que ocorreu entre 1835 e 1840 na província do Grão-Pará (hoje estados do Pará e Amazonas).


Este episódio de quase dois séculos atrás é apresentado na decisão de Jaiza Fraxe, que transcreveu argumentos da ação do MPF mostrando documentos que comprovam que o povo Mura habitava o lago Soares, no mínimo, desde 1838.


“Trata-se de fato histórico incontroverso, oficial e devidamente registrado nos anais da história do Brasil, não havendo como ser apagado”, diz a juíza, na decisão.

Em maio desse ano, a juíza Jaiza Fraxe determinou a anulação da compra dos imóveis dentro de Soares e Urucurituba pela empresa.


Procurada pela Amazônia Real, a Funai não respondeu às perguntas enviadas à assessoria de comunicação. No entanto, o órgão já se manifestou nos autos, conforme consta na decisão judicial. A Funai invoca o marco temporal para “argumentar implicitamente que o lago Soares não deve ser demarcado como Terra Indígena porque não haveria ocupação indígena comprovada anterior à Constituição de 1988”.


Mas, para a juíza, “não há controvérsia (nos autos) sobre a veracidade da ocupação desde 1838 até a presente data, de onde se conclui que não se aplica ao caso a inconstitucional tese do marco temporal”.


Nos últimos anos, várias perfurações para a mineração foram feitas no entorno de outros territórios Mura, em Autazes, mas em 2016 o MPF entrou com uma ação na Justiça Federal para interromper a atividade. Na ocasião, a licença havia sido concedida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do governo do Amazonas. Para o MPF, no entanto, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Estudo de Componente Indígena (ECI), que ainda não foi concluído, devem ser analisados pelo Ibama, e não pelo Ipaam.


Até 2016, acreditava-se que a exploração mineral atingia diretamente apenas as Terras Indígenas Jauary e Paracuuba, que são demarcadas, e que foram o primeiro objeto de judicialização do MPF. Nessa época, pouco se falava de Soares e Urucurituba, onde realmente a atividade minerária pretende explorar a silvinita. Desde então, o empreendimento está parado, mas a Potássio do Brasil, apoiada por políticos do Amazonas e do município, entre eles o governador Wilson Lima (União Brasil), nunca abandonou o projeto.


Em 2022, mediados pela Justiça Federal, os Mura de Autazes e do município vizinho Careiro iniciaram a pré-consulta para discutir e deliberar sobre o empreendimento. Atualmente, a atividade está parada.


Em declaração anterior, a empresa Potássio do Brasil informou que “as aquisições de terras realizadas foram embasadas por laudos técnicos de avaliação elaborados por empresas especializadas no ramo. Portanto, as terras foram adquiridas de forma legal e respeitando as leis brasileiras”. A empresa disse também que “possui a Licença Prévia e que está aguardando obter a Licença de Implantação”.


A juíza Jaiza Fraxe (de blusa preta), na aldeia Soares (reprodução TV Globo)

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