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Justiça ignora terra dos Mura em processo de demarcação e autoriza licenciamento

Indígenas Mura durante encontro dia 1 de abril (Foto: Crédito: Alex Ximango).

Indígenas Mura da comunidade Lago do Soares, no município de Autazes, no Amazonas, denunciam que desde o fim de fevereiro de 2024 a empresa Potássio do Brasil realiza obras no território sem autorização deles. Os trabalhos da empresa estão se expandindo para as proximidades de suas moradias, com árvores dentro do terreno dos indígenas recebendo marcações numéricas para mapeamentos, conforme relatos e imagens enviados à Amazônia Real.

Os indígenas também registraram abertura de picadas (pequenos ramais de acesso), clareiras e a presença de trabalhadores da empresa. Eles avistaram drones sobrevoando a comunidade e diariamente cruzam com embarcações circulando pelos rios e lagos. Em outras expedições diárias, eles presenciaram pessoas removendo o solo e instalando equipamentos.


Lago do Soares é uma comunidade indígena do povo Mura de mais de 200 anos que luta desde 2003 pela demarcação. Somente em 2023 é que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) constituiu o GT (Grupo Técnico) para iniciar a delimitação e demarcação do território. O órgão ainda não iniciou essa segunda fase do processo.


A movimentação de trabalhadores identificados pelos Mura no território acontece após decisão do desembargador Marcus Augusto de Souza, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, autorizando a manutenção da competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) em conceder as licenças ambientais. No dia 9 de fevereiro, o desembargador derrubou decisão anterior, da juíza Jaiza Fraxe, da Justiça Federal do Amazonas, que havia suspendido o licenciamento em novembro de 2023, atendendo pedido do Ministério Público Federal (MPF) e dos indígenas Mura contra a exploração minerária.


Marcus Augusto de Souza aceitou recurso da Potássio do Brasil, que tem na sua equipe de advogados Luís Inácio Adams. Adams foi chefe da Advocacia Geral da União (AGU) entre 2009 e 2016, nos governos petistas e nos últimos anos tem atuado em defesa da indústria de mineração e do agronegócio. Em novembro de 2023, Adams esteve em uma reunião com o atual chefe da AGU, Jorge Messias, na qual foram discutidos os projetos de fertilizantes e defesa do agronegócio. Em 2012, Adams criou a controvertida e questionada Portaria 303, que dificultava juridicamente a demarcação de terras indígenas. 


No último dia 30 de março, uma nova decisão do TRF1 favoreceu os interesses da Potássio do Brasil. Acatando um agravo de instrumento da empresa, o desembargador Flávio Jardim autorizou o prosseguimento do licenciamento ambiental pelo Ipaam “até ulterior decisão”.


A comunidade Lago do Soares tem mais de 200 famílias e está sobreposta à mina de silvinita da Potássio do Brasil. A empresa tem licenciamentos do Ipaam, mas eles são questionados na Justiça pelo MPF e pelas lideranças Mura de Soares e de outras comunidades indígenas de Autazes e da cidade vizinha de Careiro da Várzea.


Sérgio Nascimento, uma das principais lideranças do Lago do Soares, disse que os funcionários da empresa estão fazendo mapeamento e passam de carro e lanchas tranquilamente, sem se importarem de estar em terra indígena. “Estão sempre chegando mais funcionários. A comunidade fica amedrontada. Nos sentimos ameaçados. Estamos todos revoltados. A empresa quer forçar a entrada dela aqui. Não queremos conflito. Por isso fizemos denúncia ao Ministério Público Federal, à Funai e queremos providências. Queremos que saiam daqui”, afirmou Nascimento à Amazônia Real.


Nascimento e outros indígenas afirmam que o avanço da atividade vai afetar a população local e impactar imediatamente os recursos naturais, pesqueiros e outras fontes de alimentação. Eles alertam que vai aumentar o desmatamento e a poluição dos ecossistemas aquáticos. O Lago do Soares é uma região de várzea, e micro-bacia do rio Madeira, afluente do rio Amazonas.


Em carta denúncia enviada no dia 6 de março ao MPF, a comunidade indígena diz o seguinte: “Desde a última semana do mês de fevereiro percebemos a presença de pessoas da empresa Potássio do Brasil dentro do nosso território, tanto pelo rio, quanto por terra e com drones que foram presenciados por moradores da comunidade pela manhã e noite. Estão fazendo ramais de acesso a terras, onde estão seus marcos de georreferenciamento”. Os Mura pedem providências e a retirada das pessoas da empresa, pois se sentem “inseguros em sair de casa para ir trabalhar, pescar ou transitar pelo lago”. 


Segundo Sérgio Nascimento, a empresa está tentando entrar na comunidade indígena Lago do Soares, sem consulta e sem seguir os trâmites legais. “Ficam trabalhando na mata dia e noite. E tem aumentado o número de funcionários, estão até montando sinal de internet. A gente quer que a Funai também tome medidas, estamos aguardando a demarcação”, disse.


Em um terreno mais afastado do agrupamento de moradias principal do Lago do Soares, um indígena Mura está revoltado com o que vem observando há várias semanas. Ele fez alguns registros e enviou para a Amazônia Real. Em um dos vídeos, o indígena [que pediu para não ter seu nome identificado] mostra um caminho aberto de 500 metros dentro de seu terreno. O indígena também viu instalação de placas e árvores com marcações de números, possivelmente para derrubada ou para georreferenciamento. 


“Estão invadindo meu terreno. Estão fazendo isso sem meu consentimento. Está tudo em cima do meu terreno. Com que ordem que eles fazem isso?  Quero ajuda da Justiça. Como eles fazem isso comigo?”, cobra ele, no vídeo.



Risco de Conflito

No dia 8 de março, uma equipe de assessoria jurídica popular do Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) enviou um ofício detalhando as denúncias para o Ministério dos Povos Indígenas e para a Funai solicitando em caráter de urgência “agenda e providências quanto à intrusão em Terra Indígena (Terra Indígena Lago do Soares/Urucurituba, Município de Autazes, Estado do Amazonas)” e pedido para evitar conflitos e riscos aos indígenas.


“A empresa se encontra enviando funcionários que estão desmatando e interferindo na localidade, gerando transtornos à comunidade que se sente coagida, ameaçada e amedrontada psicologicamente pela presença de estranhos, drones e lanchas, realizando monitoramentos e invasões de seu território”, diz trecho do comunicado.


Conforme os advogados, a empresa entrou no território “sob a justificativa de que tal ação havia sido solicitada pelo Ipaam e que aquela área trata-se de terrenos legalmente comprados”.


Para os advogados do Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia, a empresa “passou a utilizar a decisão proferida como salvo-conduto para invadir o território autodemarcado”.


Em resposta à reportagem, o Ipaam disse que “não há prazo definido para a emissão do parecer que libera a Licença de Instalação (LI) à empresa Potássio do Brasil, devido à paralisação do processo”.


O órgão disse que “por meio de uma comissão multidisciplinar constituída por portaria, iniciou a análise dos projetos de cada atividade a ser licenciada, dentro da etapa do processo de LI”. Segundo o Ipaam, a empresa deve iniciar as obras apenas quando o parecer for liberado.


Em reportagem publicada no jornal A Crítica, o presidente do Ipaam, Juliano Valente, disse que o governo deve finalizar o licenciamento de exploração de potássio até junho, mas que a data depende “de outros órgãos”.


A empresa Potássio do Brasil foi procurada, mas não respondeu. A matéria será atualizada caso haja resposta. O MPF também não se manifestou para esta reportagem.


Funai quer conciliação


Indígenas Mura mostram as perfurações - Foto: (Crédito: Bruno Kelly/Amazônia Real/2022).

Apesar de ter constituído o GT de delimitação, a Funai solicitou no mês passado a suspensão do processo judicial envolvendo o caso, passando para a apreciação da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF/AGU). O pedido foi feito no último dia 18 de março pelo procurador federal Cássio Cunha de Almeida na 1ª Vara da Justiça Federal do Amazonas e está em análise.


Conforme o documento do procurador, o pedido, autorizado pela presidente do órgão, Joenia Wapichana, ocorre tendo em vista “potencial conflito de interesses e de posicionamento” entre a Funai, a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a União.


O GT de Delimitação e Demarcação foi constituído no dia 3 de agosto de 2023 da Terra Indígena Soares/Urucurituba. No dia 9 de agosto, o órgão indigenista recomendou à empresa e ao Ipaam a “suspensão do processo licenciamento ambiental até que fossem concluídos os estudos que subsidiarão manifestação da FUNAI ao órgão licenciador competente”. A recomendação não foi aceita.


Especialistas ouvidos pela Amazônia Real que acompanham o caso dos indígenas Mura afirmam que o passo seguinte ao GT é a criação do Relatório Circunstanciado de Identificação de Delimitação da Terra Indígena e elaboração de mapas territoriais.


Porém, os procedimentos da Funai estão amarrados pela Lei 14.701/2023 (a lei do marco temporal), cujo artigo 9º permite atividades por não indígenas antes de concluído o processo demarcatório, embora não cite explicitamente atividades de exploração de recursos naturais. “A CCAF é um órgão político. E a suspensão do processo pode prejudicar os indígenas. Não traz benefícios para eles”, disse uma jurista ouvida pela reportagem.


Críticas ao governo Lula


Para indígenas ouvidos pela Amazônia Real, as últimas decisões judicial estão sendo utilizadas como pretextos para acelerar as licenças ambientais e realizar um processo apressado do empreendimento.


O professor e liderança Herton Mura, morador da aldeia Santo Antônio, em Careiro da Várzea, avalia que as decisões que permitem a mineração no território indígena são resultado de uma força política que tem apoio no município de Autazes, no governo do Amazonas e no governo federal. Ele critica o governador do Amazonas, Wilson Lima, que defende abertamente a mineração e também o presidente Lula.


“O governo brasileiro tem vendido para o mundo que está protegendo a Amazônia. Está correndo atrás de recurso, fazendo de tudo para conseguir dinheiro, dizendo que é para diminuir o desmatamento. Faz propaganda e aqui estamos nós, Mura, pedindo socorro. Espero que o governo pare de fingir que a gente não existe, que o Lago do Soares não é terra indígena”, diz Herton.


Ele também criticou a Funai que, para ele, está se colocando “como fraca” diante do que está acontecendo e das pressões internas dentro do governo federal. “No primeiro momento, a Funai dizia que se tratava de terra indígena. Atualmente, vem se negando inclusive a atender a demanda do povo indígena de Soares. A gente esperava uma resposta mais contundente, mais severa, do órgão que tem a competência de proteger os povos indígenas”.


Para Herton Mura, a mineração na terra indígena é a repetição de um cenário de colonização que vem desde a invasão europeia, que sempre desejou exterminar os Mura.

“A única diferença é que ainda não houve assassinato físico. Mas pelos bastidores está havendo movimentação entre políticos, entre judiciários, tentando negociar a vida do povo Mura. É como se o povo Mura não existisse nessa região. Nem perguntam como vai ser a vida dos indígenas. Só estão de olho na exploração.”

O líder Herton Mura (Foto: (Crédito: Alex Ximango).

Ele também é contrário ao pedido do procurador federal da Funai de suspender o processo judicial e submeter o assunto para a CCAF. “Vão levar para uma mesa de negociação? Vão negociar a vida do povo Mura? A gente não aceita. Como querem decidir a nossa vida sem a nossa participação? Qual a dificuldade do governo brasileiro e do governo do Amazonas fazerem a consulta de acordo com o protocolo, sem violar? Já que há necessidade nacional da atividade econômica, que haja o diálogo. Mas de forma correta. Não de forma obscura, chamar meia dúzia de pessoas, negociar e oferecer vantagens”, diz.


Grupo de indígenas se diz a favor

Indígenas a favor da Potássio em encontro com o governador, além de representantes do grupo Potássio do Brasil, deputados estaduais e os secretários estaduais e o prefeito de Autazes, Andreson Cavalcante (Foto:Crédito:Diego Perez-Secom).

Apesar da oposição à mineração pela comunidade Lago de Soares, um grupo de indígenas Mura se diz a favor, ao aceitar pretensos benefícios econômicos da empresa para as comunidades. O próprio Conselho Indígena Mura (CIM), principal organização da etnia, se coloca ao lado da empresa, tendo o advogado da organização, Izael Gonçalves, como polo passivo nos recursos judiciais.


Desde 2016, quando o MPF entrou na Justiça Federal questionando os licenciamentos liberados pelo Ipaam, uma guerra judicial se arrasta. As lideranças Mura exigiam ser consultadas e foi identificado que as terras mais afetadas eram Jauari e Paracuuba.

No curso do processo, foi constatada a sobreposição do empreendimento na comunidade Lago do Soares, que não está demarcada, mas é um território tradicional. Por não ser demarcada, as autoridades estaduais e a empresa negam ser terra indígena e por isso alegam que não precisam consultá-los e nem passar por procedimentos de licenciamento no Ibama.


À Amazônia Real, o Ministério dos Povos Indígenas respondeu que “por ser um tema crucial para os povos indígenas”, o órgão “informa adequadamente aos povos indígenas e à sociedade sobre o funcionamento do processo, evitando incompreensões sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil”.


Conforme o MPI, “a situação da TI Soares obedece essa lógica”. Segundo o órgão, “trata-se de uma das terras que o MPI acompanha, especialmente por estar numa região com grande presença indígena, e que historicamente tem sido reivindicada pelo povo Mura”.

Em nota enviada à reportagem, o MPI informou sobre a criação do GT em agosto de 2023 e que a portaria “determina o deslocamento do GT e estabelece 30 dias para os trabalhos de campo”. A portaria também estabelece o prazo de 180 dias para entrega do relatório, a contar do retorno do coordenador dos estudos.


“Considerando a precedência da reivindicação do povo Mura, e o que prevê a Constituição e o Decreto 1.775/96, que trata da demarcação de terras indígenas, os direitos territoriais desse povo devem ser respeitados”, disse em nota.

O MPI diz que há um processo judicial que discute a questão, pois existem muitos conflitos na região por ingresso na área reivindicada.


“O Ministério Público Federal ingressou com uma ação judicial em 2016, que segue pendente. É necessário aguardar a resolução judicial, mas não restam dúvidas que os direitos dos povos indígenas não devem ser alvo de interferências externas, que podem viciar o consentimento e induzir disputas entre os próprios indígenas.”


No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a atividade de mineração é apoiada pelos principais membros do grupo político do presidente. Um deles é o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB).


Fonte: Amazônia Real

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