O Amazonas, um dos primeiros epicentros da pandemia de Covid-19 no Brasil, vive agora uma segunda onda de contágios com o número de casos em aceleração. Nos últimos dias, os hospitais públicos da capital Manaus voltaram a ter os leitos de UTI para pacientes com Covid-19 lotados. Pressionado, o governo estadual anunciou, na terça-feira (27), que criará mais 30 leitos de UTI no Hospital Delphina Aziz nos próximos dias, com equipamentos enviados pelo governo federal, que só chegaram no domingo. Mas os alertas de que o pior ainda não passou já haviam sido feitos, e ignorados pelas autoridades.
“É uma série de falhas que mostram o porquê de termos ido tão mal na primeira onda de Covid-19 e de estarmos repetindo os mesmos erros na segunda onda”, reforça o pesquisador e doutorando em epidemiologia pela Fiocruz Amazônia Jesem Orellana. “Mas, agora, sem a desculpa, sem a justificativa de que não sabíamos, não tínhamos ideia de como lidar com a doença, de que não tinham testes, respiradores e profissionais da saúde. Na verdade, o cenário agora é totalmente diferente e errar, nesse ambiente, é no mínimo ingerência.”
Do início de maio ao início de setembro, o número de casos de Covid-19 estavam em desaceleração no Amazonas. Na semana do dia 6 de setembro, o número de casos chegou a 3.321, o menor desde a semana de 26 de abril, quando foram registrados 2.854 casos. Mas uma semana depois, a partir de 13 de setembro, os contágios se aceleraram.
O estado voltou a ter uma média semanal superior a 5 mil casos, como só ocorria em julho.
Na terça-feira (27), a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) declarou que a média móvel de casos de Covid-19 evoluiu 23% no Amazonas nos últimos 14 dias e que em Manaus, a alta de casos no período foi de 55%.
Segundo o boletim divulgado diariamente pela FVS-AM, até esta terça-feira (27), o Amazonas registrou 4.478 mortes em decorrência do novo coronavírus. Manaus concentra a maior parte, com 2.842 óbitos e os 61 municípios do interior outros 1.636. No mês de outubro foram registradas 298 mortes no Amazonas, entre as quais 148 com notificação para Covid-19 no dia do óbito e 150 com notificação posterior. A notificação posterior ocorre quando a causa da morte é confirmada em investigação após a data de ocorrência do óbito.
No sábado (24), o Sindicato dos Médicos do Amazonas divulgou imagens com superlotação de pacientes feitas no Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto, o maior de Manaus. Nas imagens aparecem salas superlotadas e acompanhantes deitados no chão, lembrando as trágicas cenas da primeira onda da pandemia. A entidade diz ter ouvido relatos de funcionários sobre pacientes que precisaram ser transferidos para o Delphina Aziz, mas que vieram a óbito após esperar até 48 horas pelo transporte. Um dos trabalhadores relatou que, além dessa espera, houve “12 pacientes em estado grave que morreram pela falta de oxigênio”.
No Hospital Delphina Aziz, a unidade de referência para pacientes do novo coronavírus, dos 32 leitos de UTI para esses pacientes, 28 estão ocupados. E todos os 167 leitos clínicos estão ocupados. O governo do Amazonas continua negando que a cidade esteja passando por uma segunda onda da doença.
Há cerca de 50 dias, o pesquisador Jesem Orellana tem chamado a atenção para decisões equivocadas por parte das autoridades, como a retomada das atividades escolares. Segundo Jesem, a cidade deveria ter adotado medidas mais enérgicas e lockdown, que o isolamento social rígido da população. Por causa dessas declarações, Jesem disse que foi repreendido pelas e desautorizado a falar em nome da instituição.
Jesem Orellana não chegou a ser citado nominalmente, mas foi desmentido pela FVS e pela própria Fiocruz. Em 16 de setembro, a FVS emitiu nota minimizando o aumento no número de internações nos hospitais públicos e privados de Manaus. No dia 30 de setembro, a Fiocruz publicou outra nota rechaçando a ocorrência de uma segunda onda.
Era um desmentido velado ao pesquisador, e a instituição afirmava ainda que a capital amazonense deveria apenas reforçar medidas de proteção e a rede de combate à Covid-19. Mas de lá para cá, o número de contágios em Manaus tem se mantido entre 2.300 e 3.200 casos, um patamar só comparável aos meses de maio e junho.
Orellana foi um dos primeiros pesquisadores a chamar a atenção para alto número de mortes que aconteceu em Manaus no pico da pandemia, entre abril e maio. No estudo Explosão da mortalidade no epicentro amazônico da epidemia de Covid-19, publicado em julho, ele apontou a possibilidade de alta subnotificação de mortes pela doença e destacou que a cidade é a única capital do Brasil com mais de 1,5 milhão de habitantes sem serviço de verificação de óbito e, historicamente, com precária estrutura de vigilância epidemiológica.
“Não por acaso, a proporção de mortes no domicílio ou via pública em Manaus foi aproximadamente 100% maior em 2020, quando comparado a 2019. Um quantitativo aproximadamente três vezes maior do que o observado em São Paulo, no mesmo período. Em cidades como Rio de Janeiro e Fortaleza essa proporção também foi bastante elevada, sugerindo não só ampla subnotificação, como graves falhas no enfrentamento da epidemia”, disse Jesem Orellana quando publicou o estudo.
Falhas de gestão levaram ao cenário atual
O primeiro caso do novo coronavírus no Amazonas foi registrado em 13 de março, dois dias depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarar que o mundo vivia uma pandemia. O Amazonas já registrou 157.668 casos e 4.460 mortes pela doença. Em nenhum outro lugar do Brasil a Covid-19 teve efeitos tão avassaladores quanto sobre a população de Manaus.
Jesem Orellana aponta diversas falhas na gestão da pandemia no Amazonas, entre as quais redução da vigilância epidemiológica, retomada precoce de atividades presenciais não essenciais e a falta de qualificação adequada de profissionais na FVS. “A OMS recomenda que o índice de positividade da doença esteja abaixo de 5% para que a pandemia seja considerada sob controle, mas isso nunca aconteceu em Manaus”, destaca ele. O índice mais baixo foi em março, com 12,2% e o mais alto em abril, com 42,5%. Em outubro está em 25,9%.
Jesem considera insuficiente e falha a estrutura de vigilância laboratorial e de testagem no estado do Amazonas. “Até hoje o acesso aos testes do tipo RT-PCR é limitado para a população, sobretudo do interior do Amazonas, onde também inexistem leitos de UTI. Este é um ponto fundamental, pois sem a identificação precoce de casos com recursos diagnósticos efetivos como o RT-PCR tanto estado como município não conseguem acompanhar a evolução ou a dinâmica da epidemia, seja na capital ou no interior do Amazonas”, avalia o pesquisador.
O teste do tipo RT-PCR é o mais indicado pela OMS, mas no Amazonas, 88,3% dos diagnósticos, principalmente em municípios do interior, é feito só com testes rápidos. A capacidade máxima de processamento de exames do tipo RT-PCR no Amazonas é de 1.200: 700 pelo Lacen; 250 pela FHVD; e 250 pela Fiocruz. Até o momento foram realizados 44.603 testes do tipo RT-PCR e 339.088 testes rápidos. Ou seja, em um universo de 4.207.714 habitantes, somente 9,11% da população foi testada.
A testagem imediata e o acompanhamento da evolução dos casos da doença têm sido adotado com sucesso em locais que conseguiram controlar a pandemia. No Amazonas, muitas pessoas que apenas apresentavam sintomas voltaram para casa sem testagem. “Enquanto não conseguirmos identificar pequenos focos ou surtos de transmissão do novo coronavírus, seguiremos impossibilitados de conter significativamente ou mesmo interromper a cadeia de transmissão na comunidade”, alerta Jesem.
Desde 1º de junho, quando o governador Wilson Lima (PSC) anunciou a retomada gradual das atividades presenciais não essenciais no Estado, a estrutura criada para atender pacientes da doença foi desmobilizada. O Hospital Nilton Lins, alugado por três meses por R$ 2,8 milhões e que dispunha de 148 leitos, sendo 40 de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 108 clínicos, foi desativado. O governo nega que haja uma segunda onda da Covid-19 no Amazonas. Lima foi eleito com o apoio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que rejeita publicamente as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e por cientistas no combate à pandemia.
Em nível municipal, a desmobilização também já ocorreu. O Hospital de Campanha Municipal Gilberto Novaes, mantido pela Prefeitura de Manaus em parceria com uma rede de saúde privada, desmobilizou os seus 180 leitos entre de enfermaria, semi-intensivo e de UTI. De acordo com relatório simplificado disponibilizado na internet pela prefeitura com um resumo das despesas do local, durante os 71 dias de funcionamento, o hospital pagou R$ 2.083.714,47 a cooperativas de saúde e teve R$ 14.586.504,11 em despesas com outros serviços como limpeza, locação de equipamentos e serviços laboratoriais.
No mesmo relatório, consta que a unidade recebeu R$ 1.598.021,72 em doações e que, até dia 25 de setembro, o executivo municipal recebeu R$ 38.964.913,79 em recursos federais. As doações foram usadas para a operação dos leitos e para as demais despesas foram usados recursos do Tesouro Municipal e outros recebidos para o combate à Covid-19. A empresa privada que compartilhou a gestão do local com a prefeitura também doou R$ 1 milhão e um pacote de serviços custeados pela própria.
Por meio de nota, a Secretaria de Estado de Saúde (Susam) informou à reportagem da Amazônia Real que conta com 451 leitos exclusivos para pacientes com Covid-19 e com mais 17 unidades de saúde de portas abertas, ou seja, de pronto-atendimento e sem a necessidade de encaminhamento prévio. O governo diz estar colocando em prática um plano de contingência para o período Sazonal da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag), que vai de novembro a junho, para aumentar o número de leitos para Covid-19 e reduzir as internações por outras causas na Rede Estadual de Saúde. A medida também inclui a realização de cirurgia noturna e a transferência de pacientes não-Covid para outras unidades de saúde.
A qualificação do corpo técnico e de gestores da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) é outra preocupação de Jesem Orellana. Para ele, a qualificação em epidemiologia é fundamental para bons resultados. “Estamos vendo que eles têm enormes dificuldades em entender conceitos elementares de epidemiologia”, destaca.
Conforme informações disponíveis na plataforma Lattes do CNPq, o diretor-técnico em exercício Cristiano Fernandes da Costa tem experiência na área de vigilância em saúde e controle de endemias; e a diretora-presidente, Rosemary Costa Pinto, é bioquímica especialista em saúde pública e informática. “Temos uma FVS totalmente sucateada, com pouquíssimos profissionais e que não dão conta de uma demanda desse tamanho. A Semsa, com um número bastante reduzido fazendo busca ativa em campo e de uma série de outras iniciativas da prefeitura que poderiam estar sendo feitas de contenção da circulação viral”, avalia Orellana.
Imunidade coletiva duvidosa
Filas para o auxílio emergencial em Manaus (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)
Pouco mais de um mês após a divulgação do artigo Covid-19 herd immunity in the Brazilian Amazon, que dizia que Manaus teria alcançado a condição de imunidade coletiva, também denominada de “imunidade de rebanho”, após 60% da população ter contato com o novo coronavírus, a doença continuou avançando e fazendo vítimas no Amazonas. A publicação tem como principal autora a imunologista Esther Sabino, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e que liderou o primeiro sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2 no Brasil. O artigo de Esther Sabino ainda está sob revisão de outros pesquisadores. Pelos números oficiais, até o dia 21 de outubro, teria sido apenas 3,67% da população.
Um dos maiores críticos da teoria da imunidade coletiva, o epidemiologista da USP Paulo Lotufo rechaça a divulgação de pesquisas científicas sobre o assunto, pois, segundo ele, empoderam decisões políticas erradas sobre o combate à pandemia. E o Amazonas serve de exemplo. “Matemáticos estrangeiros que fizeram cálculos a partir de premissas equivocadas contribuíram muito para isso. Continuo afirmando que o coveiro está mais próximo da realidade do que um estatístico”, diz Lotufo.
Sobre o artigo da colega Esther Sabino, Lotufo diz: “Há uma única pesquisa realizada em doadores de sangue com vários pressupostos, o que conduz a várias limitações na generalização dos achados. Bem distinto do estudo realizado no estado do Maranhão. A leitura daquele artigo não permite chegar à conclusão já exposta no título. Quem valoriza o que se passou em Manaus, por ignorância ou má fé, não faz um simples cálculo que chegaria a um número de mortes hoje no Brasil acima de 400 mil”.
Houve uma polêmica reclassificação de 400 óbitos pela Semsa e a ocultação de óbitos no boletim diário de mortes. A informação só veio à tona após publicação de artigo no site The Intercept. Caso contrário, as FVS e Susam continuariam a desmentir os pesquisadores da Fiocruz e do Inpa que alertavam sobre a segunda onda.
População refém de decisões erradas
“Com a pandemia, perdi a pouca autonomia que eu tinha. Antes ainda saia pra retirar minha aposentadoria no banco, pra visitar alguma amiga. Agora não posso fazer mais nada disso e nem sequer recebo visitas”, relata Raimunda Menezes, de 86 anos, confinada em casa há quase oito meses. Para ela, se todos fizessem a sua parte, pessoas como ela, do grupo de risco para a Covid-19, não estariam presos em casa por tanto tempo.
“Os prefeitos, os governadores, os secretários e os ministros precisam tomar atitudes mais enérgicas, senão as pessoas, sobretudo as mais jovens, não vão se dar conta da gravidade da situação e continuar vivendo como se tudo estivesse normal. Não tem nada normal”, advertiu. A aposentada mora com a filha, um neto e o genro em uma casa no bairro Centro, em Manaus. A filha, Kátia Menezes, de 64 anos, concorda com a mãe e também cré que está “presa em casa” por causa de decisões ruins do governo.
“Os culpados por essa situação no Brasil são o presidente e o governador. Eles não fizeram o que devia ser feito. E esses jovens na rua? Se eu fosse jovem eu também estaria na rua. Mas as autoridades precisam fazer alguma coisa. Eles têm que punir, multar, prender, proibir. Alguma coisa tem que ser feita, senão as pessoas vão continuar indo pra rua, se infectando e voltando pra casa contaminando os idosos que moram com eles”, avalia Kátia.
Fonte: Amazônia Real
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