top of page
Buscar

Iphan concede Licença Prévia ao Porto das Lajes no Encontro das Águas, em Manaus


Foto: (Crédito:  Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O terminal portuário é defendido pelo governo do Amazonas, mas encontra forte oposição de ambientalistas, cientistas e do movimento social de Manaus

Manaus (AM) – Sem alarde, com comunicados só para poucos interessados, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) concedeu Licença Prévia para a construção do Terminal Portuário das Lajes na área do Encontro das Águas (rios Solimões e Negro), o maior cartão-postal de Manaus. Na prática, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão estadual, recebeu autorização para dar prosseguimento na concessão das Licenças de Instalação e de Operação, próximas etapas para a realização do empreendimento. O Encontro das Águas foi tombado pelo Iphan em novembro de 2010.

Em ofício datado de dezembro de 2018, documento que a agência Amazônia Real teve acesso, a superintendente do Iphan no Amazonas, Karla Bitar, comunica a concessão da Licença Prévia para o proprietário do empreendimento, Petronio Augusto Pinheiro Filho, dono da empresa Lajes Logística, ligada ao Grupo Simões, e para o Ipaam. Karla, contudo, informava que é preciso aguardar decisão judicial no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação a uma ação civil pública contra o tombamento do encontro das águas, concedido pelo Iphan em 2010 por seu valor cultural e natural. No ano seguinte, o então governador Omar Aziz (PSD), hoje senador, moveu um processo na Justiça Federal contra a medida. A ação ainda não foi julgada pelos ministros do STF.

Petronio Augusto Pinheiro Filho integra o Grupo Simões, um dos mais tradicionais conglomerados empresariais da região norte, com negócios no Amazonas e no Pará. O Grupo Simões é dono da franquia da Coca-Cola na Amazônia e possui fábricas de refrigerante e é representante da cerveja Heineken Brasil. O grupo atua ainda no ramo de veículos e de gases. Petronio Augusto Pinheiro Filho também é sócio da empresa Juma Participações SM, no ramo de veículos.

A superintendente do Iphan, Karla Bitar, durante reunião na Aleam em abril de 2019 (Foto: Alberto César Araújo/Aleam)

O polêmico Terminal Portuário das Lajes foi anunciado em 2008 pela empresa Lajes Logística, com forte apoio do governo do Amazonas. O projeto prevê a construção de um cais flutuante para receber grandes navios de carga.

Em circunstâncias normais, já seria um projeto merecedor de grande debate público. Mas ele pode afetar diretamente o Encontro das Águas, um fenômeno hidrológico no qual os rios Solimões e Negro, que compõem a maior bacia de água doce do mundo, se encontram, mas não se misturam por quilômetros. O Negro, que nasce na Colômbia, tem a sua foz em Manaus. O Solimões, que nasce no Peru, segue seu curso com o nome de rio Amazonas, até desaguar no oceano Atlântico.

De acordo com a Assessoria de Imprensa do Iphan, o proprietário do empreendimento enviou novo projeto, que foi aprovado segundo “novas normas vigentes”. Em abril de 2017, o Iphan publicou uma nota técnica que simplesmente reduz a proteção do “objeto tombado” à “visualização e fruição do fenômeno”. E a melhor visualização ocorreria a partir do Setor do Mirante da Embratel, localizada em uma falésia (encosta rochosa vertical) no bairro Colônia Antônio Aleixo, zona leste de Manaus.

Área do entorno do Encontro das Águas, em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O Lago do Aleixo, apesar de desaguar no rio Amazonas, já nas proximidades do Encontro das Águas, e ser o curso d’água mais importante da Colônia Antônio Aleixo, foi desconsiderado pelo Iphan. Segundo a nota técnica de 2017, o Lago do Aleixo “não se relaciona com o bem protegido de uma forma totalmente homogênea” e “não possui a mesma possibilidade de fruição”.

Assinam a nota técnica Antonio Miguel Lopes de Souza e Fábio Guimarães Rolim, do Iphan. São eles que afirmam que a compreensão do tombamento foi “prejudicada pelas polarizações do momento”, que tinham o objetivo de apenas “impedir a continuidade do licenciamento do empreendimento portuário”.

Isso, segundo os autores, “acarretou uma imprecisão na caracterização do bem, sua valoração, argumento e forma de proteção”.

Em uma entrevista dada em setembro de 2011 ao site D24AM , o diretor da Lajes Lojística, Laurits Hansen, expressou o mesmo entendimento agora defendido pelo Iphan, ao dizer que o melhor ponto de visualização do Encontro das Águas é do Mirante da Embratel. “De lá, não há impacto de paisagem porque sequer é possível enxergar a Estação da Tomada d’água, muito menos a área onde ficará o porto”, disse, na ocasião.

O tombamento do Encontro das Águas ocorreu em meio a uma batalha judicial e de mobilizações de comunitários, ribeirinhos, artistas, ambientalistas, cientistas, religiosos e escritores pela proteção patrimonial da área. Na época, já havia um procedimento para iniciar o processo de tombamento do Encontro das Águas no Iphan, mas uma decisão judicial acelerou a medida ao acatar ação civil pública do Ministério Público Federal no Amazonas, em resposta a uma representação popular para proteger a área.

Foi esse tombamento que interrompeu o processo de licenciamento ambiental do Terminal Portuário das Lajes, um porto privado defendido pelo governo do Amazonas, por empresários do Polo Industrial de Manaus (PIM) e por políticos locais.

Ambientalistas são contra a obra
Vista aéra do local onde será construído o Porto das Lajes (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

“O Porto das Lajes é uma obra que por sua localização sempre mereceu de nossa parte repúdio e indignação por querer ocupar um espaço reconhecido e protegido por lei, que faz parte da história e do patrimônio dos povos da Amazônia”, afirma o educador Valter Calheiros, do movimento SOS Encontro das Águas, organização que luta desde 2010 pela homologação do tombamento. Ele é um dos vários representantes da sociedade civil que se surpreenderam com a informação da concessão da Licença Prévia por parte do Iphan.

Calheiros cobrou que o Iphan informe oficialmente seu posicionamento para os moradores das áreas ribeirinhas, já que eles serão os mais afetados. “A licença prévia foi aprovada em dezembro de 2018 e comunicada ao Ipaam, mas que até a presente data não disponibilizou para o conhecimento da sociedade. Isso nos permite afirmar que tudo foi feito às escondidas”, disse. “Com tanto espaço na orla dos nossos rios, a insistência em construir o porto neste lugar nos permite dizer que os defensores da construção do porto não possuem nenhum compromisso com a floresta, rios e com as populações que residem no entorno do Encontro das Águas e Lago do Aleixo. Vamos mobilizar a sociedade que mais uma vez saberá dizer em alta voz: Não ao Porto das Lajes.”

Ativistas e personalidades deram apoio ao SOS em 2009 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O Estado do Amazonas, por meio da Procuradora Geral do Estado (PGE), ainda não tomou uma decisão em relação ao processo judicial contra o tombamento, apesar de ter iniciado, em 2015, tentativas de conciliação e suspensão da ação que tramita no STF. A relatoria atual do processo está com a ministra Carmen Lúcia, (substituindo Dias Toffoli). A última movimentação é de junho de 2018.

O atual diretor-presidente do Ipaam, Juliano Valente, não atendeu aos pedidos de informações e de entrevistas da reportagem. Valente, que era o superintendente do Iphan no Amazonas em 2011, havia dado aval naquela época para que o Ipaam emitisse as licenças ambientais, mas foi desautorizado pela então presidência do órgão federal, que reprovou o projeto do Porto das Lajes por “ferir o tombamento”, conforme informou a Assessoria de Imprensa do órgão federal à reportagem. A reportagem tentou obter o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) do empreendido, mas ele está indisponível no site do Ipaam.

A Amazônia Real apurou que o Ipaam já se manifestou favoravelmente ao Terminal Portuário das Lajes. Em 2017, o órgão ambiental estadual criou um Grupo de Trabalho (GT) após reunião com a superintendência do Iphan. Um ano depois, em setembro de 2018, o Ipaam, que era presidido por Marcelo Dutra, enviou parecer ao Iphan informando que o GT “não vislumbra nenhum obstáculo, na questão ambiental e desenvolvimento regional, não havendo, portanto, a necessidade de realizar novos estudos”, conforme consta em documento que a reportagem teve acesso.

Mirante da Embratel a partir do Sítio Ponta das Lajes (Foto: Valter Calheiros)

Em junho de 2018, o Ministério Público Federal no Amazonas instaurou inquérito para analisar a questão. O órgão de fiscalização já está de posse da versão atualizada do projeto de avaliação de impacto ao patrimônio arqueológico apresentado pelos responsáveis pelo Terminal Portuário das Lajes.

“A documentação complementar encaminhada pelo Iphan foi enviada pelo MPF para perícia técnica no próprio órgão, para que seja analisada a adequação dos documentos às normas legais e técnicas que regem a proteção do patrimônio arqueológico brasileiro. O inquérito segue em andamento, aguardando retorno do pedido de perícia na documentação apresentada pelo Iphan para dar os próximos encaminhamentos”, disse a nota da assessoria de imprensa do MPF enviada à reportagem.

Há sítios arqueológicos
Vista do Sítio Ponta das Lajes e detalhes das inscrições nas pedras (Fotos: Helena Lima, 2010)

A Amazônia Real apurou que o Terminal Portuário das Lajes foi aprovado em 2017 pelo Iphan, portanto um ano antes da emissão da Licença Prévia. Em abril daquele mesmo ano o órgão federal elaborou a nota técnica que definia as diretrizes do tombamento do Encontro das Águas e das obras que poderiam ser feitas no entorno. Em dezembro de 2017, foi realizada uma audiência no auditório da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), sobre as diretrizes, na qual apenas empresários foram convidados.

“Nós fomos mesmo assim, sem ser convidados, porque é um tema que envolve toda a sociedade e, principalmente, os moradores do bairro Colônia Antônio Aleixo. No entanto, o que se viu, foi apenas uma apresentação de algo que já estava dado como certo. Não houve espaço para discussões ou objeções”, conta Valter Calheiros, da SOS Encontro das Águas.

O estudo que faltava para a concessão da licença prévia era o Relatório de Avaliação de Impacto Arqueológico no Terminal Portuário das Lajes, que foi realizado entre março e agosto de 2018, por encomenda da empresa Lajes Logística. Nesse estudo, a arqueóloga Angela Maria Araújo de Lima afirma que não identificou cultura material pré-colonial suficiente para provar que existe sítio arqueológico na Área Diretamente Afetada (ADA) pelo Porto. E recomenda que o Iphan dê anuência para o projeto.

Vista mostrando o Cepeam e o Mirante da Embratel (Foto: Vitor T K Raposo/Instituto Soka)

Curiosamente, o relatório de impacto arqueológico cita dois sítios “muito importantes”: o Sítio das Lajes e o Sítio Daisaku Ikeda. Entre as medidas mitigatórias, a arqueóloga recomenda “a preservação da área do empreendimento externa à ADA, associada a um programa de educação patrimonial, em especial nas escolas das imediações”.

De acordo com o relatório arqueológico, a área do empreendimento está na margem esquerda do rio Amazonas, à jusante do Encontro das Águas, com circunvizinhança do Lago do Aleixo, localizado no bairro Colônia Antônio Aleixo, na zona Leste de Manaus. A Área de Influência Direta (AID) do empreendimento abrange, além da Colônia Antônio Aleixo, os bairros Puraquequara e Mauazinho. Conforme o relatório, a Área Diretamente Afetada (ADA) do empreendimento (Porto das Lajes) compreende um terreno de 596.464,64 metros quadrados. Sendo que, destes, 157 mil metros quadrados serão diretamente afetados pelas obras do porto.

Já no parecer técnico, assinado em setembro de 2018, a Coordenação de Pesquisa e Licenciamento e a Coordenação de Pesquisa e Licenciamento do Iphan se manifestam pela “aprovação”, assim como pela “anuência da Licença Prévia, de Instalação e Operação”. Mas os dois departamentos decidiram retirar a recomendação da educação patrimonial feita pela equipe de arqueologia, afirmando que ela não é um condicionante para a aprovação do relatório e das licenças.

A Amazônia Real procurou a superintendente do Iphan no Amazonas, Karla Bitar, e Petronio Augusto Pinheiro Filho, proprietário da Lajes Logística. Ambos não responderam aos questionamentos da reportagem.

Decisão do Iphan repercute
Os arqueólogos Eduardo Góes Neves e Carlos Augusto Silva (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Sob anonimato por receio de perseguição, um especialista que acompanhou o processo de tombamento desde o início lembrou à Amazônia Real que, no parecer apresentado ao Conselho Consultivo do Iphan em novembro de 2010, o arqueólogo Eduardo Góes Neves propunha que o tombamento abrangesse “a área de entorno do encontro das águas e não do próprio encontro, dada a natureza dinâmica que tem esse fenômeno hidrológico”. Segundo esse especialista, o tombamento permitiria a proteção física da área do entorno, incluindo vegetação e sítios arqueológicos. “Mas ficou claro que os autores da Nota Técnica (de 2017) não consideraram o tombamento como instrumento legítimo para a proteção do Encontro das Águas”, observou.

À Amazônia Real, o arqueólogo Eduardo Góes Neves afirmou que a autorização para o empreendimento “é triste” e mostra “que existe um desapreço de uma parte da classe empresarial do Amazonas” pelo patrimônio cultural e paisagístico da região.

“Destruir ou impactar de maneira irreversível esse patrimônio é no mínimo uma grande estupidez. Interfere numa indústria tão importante pro Amazonas, que é o turismo. Seria o equivalente a fazer uma pedreira no Pão de Açúcar. Não consigo entender a lógica disso”, afirmou Neves, que desenvolveu durante vários anos estudos arqueológicos em Manaus e cidades vizinhas da capital, em um projeto chamado Amazônia Central, pela Universidade de São Paulo (USP).

Ativista da defesa das águas amazônicas, o geógrafo e diretor da WCS Brasil (Associação Conservação da Vida Silvestre), Carlos Durigan, destacou que os pareceres do Iphan ignoram a importância ambiental da área, que se estende por dezenas de quilômetros rios acima e abaixo, sobre as áreas inundáveis onde se formam matas de várzea igapó.

“Um exemplo emblemático é o jaraqui, peixe abundante na região e símbolo cultural quando se fala nele como fonte de alimento. Cardumes de jaraqui de centenas de milhares de peixes migram todos os anos descendo o rio Negro para se reproduzir no Encontro das Águas. Dali seus ovos e larvas são levados pela correnteza rio Amazonas abaixo, parte servindo de alimento a outros peixes e organismos, parte se abrigando pela extensão de área de várzea nas margens e na grande Ilha do Careiro onde iniciam seu crescimento e viagem rio acima para reiniciar o ciclo”, explica o geógrafo.

Carlos Durigan (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Durigan salienta que no Encontro das Águas estão centenas de outras espécies de peixes e botos, além da grande diversidade de plantas e outros animais nas suas florestas de várzea e Igapó. “Em 2018, durante o processo de priorização de áreas para a conservação liderada pelo Ministério do Meio Ambiente e que contou com a participação de dezenas de especialistas, destacou-se justamente a importância das confluências de rios e da necessidade de se construir instrumentos de proteção destas áreas pela sua importância em termos de biodiversidade e para garantia de sustento da população humana de muitas regiões que dependem da pesca”, conta.

Para Durigan, é preciso priorizar a construção de mecanismos efetivos de mitigação antes de liberar grandes empreendimentos. “Nos últimos anos temos convivido com acidentes diversos na orla de Manaus, envolvendo derrame de combustíveis, além da grande poluição dos rios Negro e Amazonas pelo despejo de grande quantidade de esgoto. Esses problemas já frequentes somados à intensificação da ocupação das áreas de entorno do Encontro das Águas podem trazer graves consequências para a sobrevivência das espécies que dependem deste fenômeno para sua sobrevivência”, alerta.

O antropólogo Alvatir Carolino da Silva é autor da tese de doutorado “Conflito e Patrimonialização – o processo de Tombamento do Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões”, pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Ele avalia que o tempo em que o processo de judicialização do tombamento ficou parado sem uma resolução acabou por favorecer os interesses da empresa e do governo estadual.

“A gente vê um jogo jogado por políticos e empresários com interesse na construção de uma estrutura portuária. [Isso] contra os interesses de pessoas que sempre viveram à margem da sociedade e sempre foram atingidas por medidas que o Estado nacional produziu sobre suas vidas”, diz Alvatir. Para ele, é recorrente lógica do capitalismo destrutivo: no primeiro momento, ocorrem o deslocamento compulsório e o isolamento das famílias; no segundo, chegam os grandes projetos.

“Então a gente percebe que o que está implícito, mas de forma objetiva, que o próprio Iphan nesse momento de 2017 para cá está muito alinhado com os interesses das construções das grandes obras”, afirma o antropólogo, que alerta que a indústria portuária vem se expandindo na região do Encontro das Águas e entorno.

Fonte: Amazônia Real - por Elaíze Farias

bottom of page