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A história da microempreendedora Lucineide Maria da Silva, cuja vida foi transformada pelo maior pro


A infância que não houve

A não ser pela felicidade passageira de subir em árvore, e de lá do alto ver o mundo diminuindo de tamanho até quase caber entre os dedos, Lucineide Maria da Silva não se lembra de ter tido infância. Aos 8 anos já plantava e colhia sisal, arrancava feijão, quebrava mamona e licuri. Aos 10, tão pequena que precisava subir num banquinho para alcançar o armário, trabalhava de doméstica a troco de um prato de comida. Aos 13, foi mãe pela primeira vez. Na sequência, mais sete filhos, que ela criou praticamente sozinha.

“Minha infância está sendo agora. Hoje sou feliz. Me sinto como um peixinho que saiu do aquário e foi viver no rio. Eu sou esse peixinho, independente e livre”, diz. Sorri.

Aos 43, Lucineide vê o mundo de cima dos telhados dos conjuntos residenciais Morada do Salitre e Praia do Rodeadouro, em Juazeiro, no sertão baiano. Os dois condomínios, quase colados um no outro, são os primeiros do Minha Casa Minha Vida a produzir e vender energia solar. Da receita total obtida com a venda da energia, cada família fica com 60%; 30% vão para um fundo destinado a investimentos nas áreas de uso comum e 10% custeiam as despesas de manutenção dos condomínios.

Os moradores, portanto, ganham duas vezes: além do dinheiro, que todos os meses vai direto para o bolso, o sol em seus telhados gera também qualidade de vida: a construção dos dois centros comunitários, os quebra-molas, as paradas de ônibus, a contratação de dentista, enfermeira, psicóloga e assistente social, os cursos de culinária, corte-costura e informática... e até as aulas de zumba.

Diferentemente de seus vizinhos, Lucineide ganha três vezes, já que seu sustento vem justamente do trabalho de manutenção das placas de energia solar. Na verdade, ganha quatro vezes – porque todos os dias, do alto dos telhados de onde avista a casa própria conquistada à custa de muita luta, Lucineide volta a ser a menina que era feliz quando subia em árvore e diminuía o tamanho do mundo.

Espiga de milho vira princesa

Na infância que não houve, Lucineide não brincou de boneca, porque boneca também não havia. O que havia eram as espigas de milho que, no seu reino do faz-de-conta, num passe de mágica ela transformava em princesas. Até o dia em que Lucineide e as quatro irmãs (eram também seis meninos, 11 filhos de dona Áurea e sêo Aurino) sentiram na pele a ira paterna, em forma de surra de cipó. O motivo: cada boneca-espiga a mais significava alimento a menos.

“Eu queria explicar pro meu pai que aquilo não era espiga de milho, era boneca, era o meu brinquedo, mas ele não entendia.”

O jeito passou a ser juntar dois pedacinhos de pau em forma de cruz, amarrar uns farrapos de pano em torno deles e dar ainda mais asas à imaginação, para convencer a si própria de que, sim, aquela era uma boneca.

A história de Lucineide, que tinha tudo para dar errado – e deu, durante tanto tempo –, começou a mudar graças às políticas de geração de trabalho, renda e inclusão social que mudaram o Brasil.

Com o Bolsa Família, que ajudou a tirar 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza, ela conseguiu manter os quatro filhos mais novos na escola. Com o Minha Casa Minha Vida, que já beneficiou 9,6 milhões de pessoas, conquistou o direito de morar com dignidade no que é seu.

Lucineide se beneficiou também dos investimentos recordes em fontes alternativas de energia, que hoje lhe garantem trabalho e renda. As usinas eólicas duplicaram a produção no primeiro semestre de 2015. A energia solar, que também avança de forma acelerada, será responsável por 4% da matriz energética brasileira até 2024 – para felicidade de Lucineide e de todos que extraem do sol o seu ganha-pão.

Ninguém tira de mim

No dia da entrega das chaves da casa própria, os dois andares da igreja estavam abarrotados de gente. Cada contemplado era chamado pelo nome e ia embora com a chave na mão e um sorriso de orelha a orelha. Aos poucos, a igreja foi ficando vazia, ficando vazia, ficando vazia... Até que só restou Lucineide.

“Demorou tanto que eu pensei que tinha era sonhado aquilo tudo e que nunca ia ter minha casa de verdade. Aí chamaram meu nome, e pensei: Eles me deixaram por último pra testar até onde ia a minha fé. Eu levantei tremendo, acreditando e não acreditando, e perguntei pra funcionária: ‘moça, é sonho?’, e ela respondeu: ‘é não, mulher, tome aqui a chave da sua casa’”.

Lucineide, que vivia mudando de endereço – de moradia precária em moradia precária, de aluguel mais caro do que podia pagar para outro ainda mais caro –, agarrou a chave com as duas mãos, e declarou em alto e bom som, ao abrir pela primeira vez a porta de sua casa: “É minha, é minha, e ninguém tira de mim”.

Até hoje, quatro anos depois, chora ao recordar.

“Hoje tenho meu endereço, tenho água e luz no meu nome. Antes, morava no que era dos outros. No dia que o dono queria a casa de volta eu era obrigada a sair carregando meus filhos e minhas coisas. Um dia estava ali, no outro não estava mais. Alguém ia me visitar e dava com o nariz na porta porque eu já estava morando em outro lugar. Hoje, quando volto numa loja que já comprei, e a moça do crediário puxa o cadastro e pergunta: ‘a senhora ainda mora no mesmo endereço?’, eu tenho o prazer de dizer: com certeza!”

Renda e qualidade de vida

Lucineide e os vizinhos se orgulham de fazer parte de uma iniciativa pioneira. Em novembro de 2015, o projeto “Geração de Renda e Energia no Minha Casa, Minha Vida”, implantado nos Condomínios Praia do Rodeadouro e Morada do Salitre, recebeu o Prêmio Melhores Práticas, da Caixa Econômica Federal.

Financiada pelo Fundo Socioambiental da Caixa, em parceria com a empresa Brasil Solair, a maior central fotovoltaica do Brasil instalada em telhados não gera apenas energia: gera renda e qualidade de vida para os moradores dos dois condomínios, que, juntos, abrigam mil famílias, com renda entre zero e três salários mínimos.

Entre fevereiro de 2014 e novembro de 2015, o projeto gerou 5,465 GWh de energia, que foram vendidos. A opção pela venda, em vez da utilização pelos próprios beneficiários, está relacionada ao preço da energia consumida pelas residências, que pagam tarifa social, e ao preço de venda no mercado da energia gerada, que é superior à tarifa social.

Nesse um ano e nove meses, a receita líquida chegou a R$ 2,27 milhões. Cada família recebeu R$ 1.366 - R$ 62 por mês, o suficiente para pagar a prestação da casa própria e a conta de luz.

Nesse mesmo período, R$ 683 mil foram destinados ao fundo condominial, resultando em melhorias como reforma e ampliação dos centros comunitários, construção de redutores de velocidade, paradas de ônibus cobertas, plantio de árvores, serviços de vigilância, aquisição de computadores, cursos de informática e contratação de serviços de dentista, psicólogo e enfermeira para atendimento aos moradores.

Todo o amor do mundo

A parceria entre a Caixa Econômica Federal e a empresa Brasil Solair chegou num momento particularmente difícil da vida de Lucineide: traumatizada pelo fim do casamento, deprimida, desempregada, com quatro filhos menores para criar. Tudo o que possuía era o Bolsa Família e a casa própria, além de uma enorme força de vontade.

Hoje eu tenho até uma boneca, que meu esposo me deu, guardada numa caixinha, com todo amor

Lucineide Maria da Silva

No primeiro momento, devido à carência de mão-de-obra qualificada, a Brasil Solair pensou em contratar técnicos alemães para a instalação das placas fotovoltaicas, mas optou por treinar os próprios moradores, gerando emprego e renda na comunidade.

Foi aí que as síndicas dos dois condomínios, Gilza Martins e Marinalva Sobreira dos Santos, apresentaram a reivindicação: as mulheres deveriam ocupar 50% das 34 vagas de treinamento.

“Muitas das mulheres da comunidade estavam presas a casamentos ruins, eram submissas, viviam humilhadas, até mesmo espancadas pelos maridos. De repente, 90% das casas dos dois condomínios estavam em nome delas. Quando se deram conta disso, elas ganharam autoestima, se libertaram, começaram a conquistar seus espaços”, lembra Marinalva.

“A gente queria que essas mulheres se profissionalizassem. A empresa aceitou, e elas fizeram o maior sucesso. Muitos homens desistiram no meio do curso, mas as mulheres foram até o fim”, completa Gilza.

Na entrevista de emprego, Lucineide garantiu a vaga ao contar as histórias de suas escaladas em árvores. Foi a mais esforçada da turma. Treinava duro, do começo ao fim das aulas. Na hora do almoço, pegava a marmita a que tinha direito, como todos os colegas, e desaparecia sem deixar rastro. Chamou a atenção do encarregado da empresa, que acabou por desvendar o mistério: tão logo pegava a marmita, Lucineide corria para casa, alimentava os filhos e voltava de barriga vazia. A partir dessa descoberta, a empresa decidiu que cada aluno receberia duas marmitas. Lucineide passou a treinar com ainda mais energia.

Além da coragem para trabalhar no alto dos telhados, o trabalho exigia equilíbrio. Depois da aula, Lucineide treinava sozinha em casa. Colocava uma ripa de madeira no chão, um livro na cabeça, uma venda nos olhos, e caminhava firme de uma ponta à outra. “Como se eu fosse uma modelo, desfilando de salto alto”, brinca Lucineide, que se orgulha de jamais ter caído de árvore.

Terminada a etapa de instalação, ela e mais três colegas de turma (Elis Regina, Silvânia e Gérson) foram convidados a continuar trabalhando, agora na manutenção das placas. Lucineide limpa cada uma com todo o amor do mundo. De acordo com as especificações do fabricante, as placas têm vida útil de 25 anos, em média. “Mas se depender de mim, elas vão durar é pra sempre”, garante.

Na sala da casa, ao lado das fotos dos filhos e do atual marido, Lucineide tem na parede um quadro com a sua inscrição no programa de microempreendedor individual (MEI). Ela seguiu o exemplo de 600 mil beneficiários do Bolsa Família e aderiu ao MEI, beneficiando-se de mais uma política de inclusão social implantada no Brasil. Entre as vantagens de ser um MEI estão o registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), o que facilita a abertura de conta bancária, o pedido de empréstimos e a emissão de notas fiscais, além de acesso a benefícios como auxílio maternidade, auxílio-doença e aposentadoria, entre outros.

Hoje, a microempreendedora Lucineide Maria da Silva não tem patrão e faz a própria jornada de trabalho. Além dos dois condomínios do Minha Casa, Minha Vida, presta serviços para outros pequenos empreendimentos que utilizam energia solar, próximos a Juazeiro. Trabalha duro e ganha o suficiente para uma vida sem grandes confortos, mas com dignidade.

A menina que brincava com espiga de milho e pedacinhos de pau em forma de cruz sabe que tem uma longa caminhada pela frente. Mas comemora cada passo, por menor que possa parecer.

“Hoje eu tenho até uma boneca, que meu esposo me deu, guardada numa caixinha, com todo amor. Ele disse que vai fazer uma banquinha no nosso quarto e encher de bonecas, pra eu brincar até ficar velhinha”, confidencia, feliz que nem a criança que ela, enfim, aprendeu a ser.

Fonte: .Portal Brasil - Historias do Brasil - por José Rezende Jr.

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