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A cultura como arma contra a pandemia


Por Marcello Rollemberg


Quando milhões de pessoas, Brasil afora, pularam sete ondinhas na passagem de 2019 para 2020, estouraram garrafas de champanhe e separaram sementes de uva para garantir prosperidade e felicidade no novo ano, ninguém esperava por isso. Quando seguidores dos mais variados e relevantes credos fizeram suas orações por um 2020 cheio de paz, ninguém esperava por isso. Quando se escolheu a cor da roupa para o Reveillon entre o amarelo para ter dinheiro ou o vermelho para ter sorte no amor, também ninguém esperava por isso. Porque mais do que um novo ano cheio de expectativas e esperanças, um ano regido no horóscopo chinês pelo rato, o que ganhamos no primeiro trimestre de 2020 foi um ano inteiro regido por dois nomes, sinônimos entre si em sua performance maligna: coronavírus e covid-19. Não houve ondinha que desse jeito nesse bicho do mal. E também não houve cor de roupa que pudesse garantir um bom ano quando a doença se espalhou como rastilho de pólvora por todas as latitudes do planeta – qual é o tom certo para combater um vírus? Mas 2020 seguiu seu curso, aos trancos e barrancos, é verdade, com muitas e lamentáveis perdas, e todos, sem exceção – até aqueles que fingiam não ver o mal que se alastrava ou o minimizava -, tiveram que se reinventar e se adaptar nesse novo e estranho normal de distanciamento social, máscaras no rosto e vida vivida virtualmente.

Nesse novo quadro de reinvenção, a Cultura – com “C” maiúsculo mesmo – teve um papel essencial. Porque, se nossa saúde física depende, e muito, das descobertas da Ciência, das vacinas que estão chegando e dos profissionais de saúde que se esmeraram e continuam se esmerando em tratar milhares de doentes, a nossa saúde mental – e anímica – esteve nas mãos dos bens culturais que conseguimos consumir ao longo desses meses pandêmicos. Esteve e ainda está. E não importa se a sanidade da alma conseguiu ser mantida maratonando séries, lendo livros ou vendo lives atrás de lives no computador. O importante foi consumir cultura e, com ela, garantir a nossa relação com o mundo sensível e fugaz que passamos a admirar este ano, na maioria das vezes, apenas pelas janelas. “Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva”, afirmou certa vez o escritor franco-argelino Albert Camus, coincidentemente autor de uma obra chamada A Peste. E para que a nossa sociedade não virasse uma jângal cuja salvação seria o ar condicionado de um shopping, consumiu-se cultura da forma que foi possível. Os teatros, cinemas, casas de espetáculo, livrarias, estão fechados? Caiamos, então, na virtualidade do ser e do estar, com as telas dos computadores, tablets e celulares – eivadas da assepsia do distanciamento social – se transformando nos novos cinemas, estantes e palcos da nova ordem. Cultura na pandemia Nesse novo momento, talvez nunca tenha se consumido tanta cultura, por mais paradoxal que a ideia possa ser. Porque, no redimensionamento das ofertas culturais, muitos shows, lives e espetáculos teatrais foram disponibilizados gratuitamente. Estavam – e ainda estão – ali para quem quiser ver. É só acessar os Youtubes, Facebooks e Instagrans da vida longe do normal. Durante a quarentena, por exemplo, a Orquestra Sinfônica da USP, a Osusp, lançou uma série de novos projetos, que começou com Amarildo Nascimento e o Trompete e seguiu 2020 adentro oferecendo lives – definitivamente, a forma mais usada para colocar à disposição conteúdos culturais. A ideia era, como disse Fábio Cury, diretor da Osusp, “aprofundar as facetas educativas e interativas da orquestra”. Conseguiu.

E a música virtual não parou por aí. A elegante Sala São Paulo criou sua versão digital e passou a oferecer concertos os mais diversos, como aquele que reuniu o violinista Emmanuele Baldini e seis alunos da Academia de Música da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, para apresentar peças de Bach e Schubert na internet.

“A música tem vocação civilizatória, porque nos ensina a ouvir. Se a gente ouvisse mais uns aos outros, em vez de estar ressaltando diferenças, estaríamos ressaltando semelhanças”, afirmou ao Jornal da USP o professor Gil Jardim, maestro titular da Orquestra de Câmara da Escola da Escola de Comunicações e Artes da USP, a Ocam. Foi pensando justamente nessa vocação que a orquestra levou ao ar o vídeo Espero que Nomes Consigam Tocar, uma homenagem às vítimas da covid-19 que contou com a participação do músico Chico César.

Na mesma linha, o Coral da USP, ou Coralusp, e todos os seus grupos espalhados pelos campi da Universidade produziram uma série de vídeos musicais. Dois grupos de Ribeirão Preto, por exemplo – o Coro Universitário e o Grupo Feminino Zênite -, criaram vídeos para deixar a pandemia mais leve. A música escolhida para a apresentação do Coro Universitário não poderia ser mais apropriada: É Preciso Saber Viver, de Roberto e Erasmo Carlos. Outro grupo, o recém-formado Cantares Virtuais, que conta com 37 integrantes do Coralusp, disponibilizou na internet uma belíssima versão de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Em apenas duas semanas, o vídeo teve mais de mil visualizações. “É também uma forma de fortalecer o vínculo entre os cantores neste momento tão complicado, além de continuarmos cantando”, explicou Robert Gavidia Bovadilla, um dos idealizadores do projeto.

A Osusp e o Coralusp estão ligados à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, que através deles e de outros órgãos – como o Teatro da USP (Tusp), o Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp) e o Centro Universitário Maria Antonia – vem dando significativa contribuição para a promoção da cultura ao longo de todos esses meses sob a pandemia. O Cinusp, por exemplo, realizou sessões de cinema virtuais, inclusive com debates que tiveram a participação de diretores de filmes exibidos nas sessões. Mais ainda: a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária disponibilizou uma série de atividades culturais on-line, através do projeto USP Cultura em Casa.

Letras virtuais E os livros, onde ficam nessa história, com muitas livrarias – principalmente as pequenas – tendo que fechar suas portas? Algumas grandes também encerraram as atividades, mas aí a culpa não foi da pandemia – e é outra história, que não cabe nem aqui nem agora. Com os livros, na verdade, aconteceu uma lenta mas incisiva migração do físico para o virtual. O brasileiro, pasmem, comprou mais livro durante a pandemia – esse vírus miserável não merece nenhum tipo de gratidão, nunca, mas acabou colaborando para que um hábito tão pouco exercitado no País fosse também redimensionado. Segundo o Sindicato Nacional de Editores e Livreiros, o Snel, e a Câmara Brasileira do Livro, CBL, só o mês de julho, por exemplo, teve uma alta de 17% na venda de livros em relação ao mesmo mês em 2019. Ainda segundo as entidades editoriais, entre setembro e outubro, houve uma alta de 7,31%, com 3,17 milhões de livros vendidos. “A gente achou que o mundo ia acabar em março. De repente, o varejo on-line se prepara para fazer vendas e o brasileiro volta a ler”, constatou Marcos da Veiga Pereira, presidente do Snel, aliviado por ter ultrapassado o trajeto mais engarrafado da crise.

Nessa ultrapassagem, também, claro, houve reinvenções e adaptações. Feiras de livros tradicionais tiveram que ser canceladas e ganharam uma versão on-line, como a popularíssima Festa do Livro da Editora da USP, a Edusp. Não é a mesma coisa, com certeza, nunca será – principalmente para quem adora chafurdar entre prateleiras e pilhas de livros para encontrar não o título desejado, mas aquele sobre o qual nunca havia ouvido falar e se apresenta quase como um presente, um santo graal encadernado. Mas, se não é possível, que se vasculhe as prateleiras virtuais e se consuma letras idem. O saldo em 2020 ainda é negativo devido ao impacto dos primeiros e mais deprimentes meses da pandemia, mas a situação melhorou bastante.

Afinal, a cultura, em todas as suas formas, acabou servindo – se não ainda de um porto seguro em meio ao turbilhão causado pelo coronavírus – pelo menos de um salva-vidas (e mentes) confiável enquanto o tsunami não passa. E isso é importantíssimo neste momento em que estamos vivendo – e não falamos aqui só de pandemia, certo? A questão é muito mais ampla. É como disse certa vez o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, eterno irmão do Henfil: “Um país não muda pela sua economia, sua política. Muda, sim, pela sua cultura”.


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