Por Frederico José Gueiros Filho e Alicia Kowaltowski, professores do Instituto de Química da USP
O Brasil vem sofrendo verdadeira mutilação de seu orçamento para ciência e tecnologia desde 2016, colocando em risco a sobrevivência de um sistema que, mesmo a duras penas, tornou-se respeitado internacionalmente. Isso não é alarmismo ou hipérbole: o dispêndio federal em C&T em 2020 deve ser equivalente a 35% do valor investido em 2015, quando a trajetória de queda livre começou. É notório que em 2020 o orçamento do CNPq para fomento à pesquisa foi de apenas 82 milhões, um valor irrisório e que resultou na paralização de projetos país afora. As perspectivas para o ano que vem são ainda piores – a proposta orçamentária do governo federal para o MCTI representa corte de 30% em relação ao já catastrófico orçamento de 2020. Nossa bandeira número um deve ser pela recomposição desses orçamentos, mesmo em momentos de crise. No entanto, enquanto isso não acontece, temos a responsabilidade de exigir que os poucos recursos existentes sejam distribuídos da maneira mais justa, transparente e efetiva possível.
Fragilizado tanto pela diminuição sucessiva de recursos como pela ameaça de fusão com a Capes, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou no final de 2019 que mudaria seu mecanismo de concessão de bolsas de pós-graduação. Em vez de distribuir cotas de bolsas aos programas de pós-graduação, que até então selecionavam por mérito os pós-graduandos que as receberiam, passaria a usar (nas próprias palavras do CNPq) “um modelo de alocação majoritária por meio de chamadas públicas, com foco direcionado para modalidades e temáticas em áreas prioritárias e estratégicas para o MCTIC [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações], vinculando as bolsas a projetos de pesquisa”.
Tal mudança poderia ser saudável – há anos que as cotas concedidas aos programas estavam “congeladas”, impedindo o acesso de novos programas a bolsas e correções necessárias em um sistema em constante evolução. A ideia de se privilegiar a qualidade de projetos de pesquisa também poderia ser positiva, se embasada por um processo de avaliação sério e dotado de credibilidade. No entanto, por ocorrer justo no momento de aguda crise orçamentária e liderada por um governo que, mesmo antes da pandemia, já se mostrara não apenas negacionista mas franco antagonista da comunidade científica nacional, a mudança nos procedimentos do CNPq gerou apreensão e desconfiança. Vale lembrar que em abril havia sido publicada chamada para projetos de iniciação científica do CNPq inicialmente excluindo ciências básicas e humanidades.
Em julho foi lançado a chamada CNPq 25/2020 detalhando o novo procedimento. A mudança radical de regras, somada ao desafio de formular um projeto institucional de pesquisa, algo nunca antes avaliado e que nem mesmo o CNPq parecia ter clareza de como se fazer, fez a apreensão da comunidade transbordar. Para crédito do CNPq, houve tentativa genuína de diálogo, tanto para esclarecer as muitas dúvidas sobre o novo procedimento, como para incorporar sugestões dos programas de pós-graduação para aprimorar o que ainda fosse possível no edital. Durante as diversas lives e reuniões virtuais que se seguiram, o CNPq também fez questão de garantir aos estressados programas que o novo processo não representaria uma mudança radical no número de bolsas concedidas a cada Programa, pois o item 5.4 do edital previa percentuais mínimos de retorno das bolsas devolvidas para os projetos aprovados (60-80%, dependendo do tamanho do Programa).
Portanto, foi com grande surpresa e justificada indignação que a comunidade recebeu os resultados da chamada 25/2020. Embora uma análise mais detalhada de seu impacto ainda precise ser feita, uma avaliação preliminar já mostra tratar-se de uma tragédia. Cerca de 70% dos programas de pós-graduação que concorreram ao edital tiveram seus projetos negados, e portanto não receberão bolsas do CNPq em 2021! Essa taxa estratosférica de reprovação basicamente tornou irrelevante a previsão de percentuais mínimos de retorno de bolsas. Onde ficou a transição gradual prometida pelo CNPq? Mesmo nos programas com pedidos aprovados, há cortes significativos das bolsas atribuídas. Por exemplo, o programa de pós-graduação em que os autores desse artigo atuam, que sempre foi considerado de excelência e uma liderança nacional na área de Bioquímica e Biologia Molecular, teve apenas uma de três bolsas de doutoramento aprovada para renovação em 2021.
Tão ou mais grave que o enorme corte de bolsas que resultará deste edital é o fato de não conseguirmos descobrir os critérios pelos quais as decisões foram tomadas. Cada proposta recebeu apenas duas notas (“avaliação do PPG como ambiente de excelência em pesquisa” e “avaliação do projeto de pesquisa apresentado”) e nada mais. Não há análise que justificasse porque um projeto foi considerado bom e outro ruim. Quem de nós ousaria reprovar um aluno sem explicar claramente porque seu desempenho foi insuficiente? Aonde foram parar os pareceres circunstanciados que são o alicerce de qualquer sistema respeitável de revisão pelos pares? Mesmo aqueles programas como o nosso que tiveram seus projetos aprovados receberam apenas o burocrático parágrafo: “A proposta teve seu mérito reconhecido, tendo sido aprovada com pontuação suficiente para contemplação. No entanto, houve corte no número de bolsas pleiteadas tendo em vista a alta demanda qualificada e necessidade de uma mais ampla distribuição do recurso.”
Lamentavelmente, a opacidade do julgamento da chamada 25/2020 não para por aí. À falta das avaliações circunstanciadas soma-se o mistério sobre o processo de avaliação. Enquanto pedidos de projetos e bolsas não vinculados a programas de pós-graduação são avaliados por assessores ad hoc e pelos Comitês de Assessoramento do CNPq, tendo portanto ampla participação da comunidade no processo decisório, os projetos da chamada 25/2020 não passaram por esses comitês. Permanece a dúvida de quais especialistas em ciência e pós-graduação foram os avaliadores e responsáveis por decisões que podem ter sério impacto sobre a maioria dos programas de pós-graduação brasileiros. Tudo isso ocorre em um ano em que o MCTI já direcionou milhões de reais de seus escassos recursos para projetos de combate à covid como, por exemplo, o ensaio clínico da nitazoxanida, sem que saibamos quem avaliou, ou mesmo se houve avaliação desses projetos.
Estamos todos no mesmo barco e entendemos como deve ser difícil estar no timão de uma agência como o CNPq em meio à tempestade que atravessamos. Sabemos que decisões duras serão necessárias e que perdas serão inevitáveis. No entanto, especialmente nesses momentos, não podemos abrir mão de total transparência, tanto de procedimentos como de propósitos. Decisões que implicam em perdas terão muito maior chance de serem aceitas se bem justificadas. Na ausência de boas justificativas, além de indignação vemos sinais preocupantes de perda de confiança na instituição. Um exemplo são os boatos que tem circulado desde o resultado da chamada. Ouve-se que em pelo menos uma área temática a avaliação e ranqueamento das propostas foi entregue pronta por técnicos do CNPq aos cientistas supostamente encarregados de avaliá-las. Fala-se também em cortes preferenciais em áreas identificadas como inimigas ideológicas do governo, não só nas humanas mas também entre programas de Saúde Pública e Epidemiologia. Para muitos, a chamada 25/2020 não passou de um expediente usado pelo CNPq para reduzir seu gasto com bolsas, sem que isso jamais tenha sido admitido. O ônus de provar que tais acusações são infundadas cabe ao CNPq neste momento.
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