Por Patrícia C. B. Beltrão-Braga, professora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e pesquisadora da Plataforma Científica Pasteur-USP (SPPU) - O ano de 2020 foi duro para todo mundo, mas para nós, cientistas, foi provavelmente o mais difícil de nossas carreiras (e espero que tenha sido “o” mais difícil, para que não tenhamos que vivenciar situações como essa novamente!). Como em outras epidemias virais que já vivemos no Brasil, como a de zika em 2015, os cientistas se viram no dever de parar as pesquisas que vinham fazendo e voltar seus esforços para enfrentar a doença. A ideia era usar o conhecimento científico adquirido estudando assuntos diversos e tentar contribuir para parar a pandemia e salvar as pessoas. Verbas de outros projetos que estavam em andamento foram remanejadas para estudar a covid-19, alunos mudaram seus projetos de pesquisa, docentes de áreas diversas se tornaram instantaneamente especialistas em covid-19.
O curioso é que o sars-cov-2 obrigou os especialistas em virologia e epidemiologia a rever alguns conceitos e previsões na medida em que a epidemia se alastrava por países, virando uma pandemia mundial, deixando até de respeitar as estações do ano, já que imaginávamos que no Brasil “a coisa não ia explodir, já que o sars-cov-2 gosta de frio, e o Brasil é quente”! Também os médicos tiveram que rever conceitos e aprender na prática como cuidar dos pacientes, assim como a OMS teve que rever orientações algumas vezes, situação mais do que esperada no caso de uma doença nova, desconhecida.
Eu me vi pela segunda vez mudando os planos da pesquisa que vinha fazendo no laboratório em função das epidemias que se apresentavam no nosso país: a primeira vez foi em 2015, por causa do zika, e agora em 2020 com o coronavírus. Com o zika, meu papel era mais óbvio, afinal era um vírus que afetava o sistema nervoso. Confesso que agora, em 2020, eu resisti a princípio, pois o corona é um vírus respiratório, distante da minha área de pesquisa. As alunas insistiram até me convencer, e mais uma vez mergulhei de cabeça, juntando a minha expertise com a de outros colegas para tentar contribuir e dar um jeito nessa praga que mudou para sempre nossas vidas!
O ano de 2020 criou uma nova safra de virologistas, obrigou os cientistas a serem resilientes e nos mostrou nossa verdadeira vocação: estamos aqui para servir à sociedade!
Devolver o que recebemos até hoje em termos de conhecimento e formação. A capacidade de se reinventar demora a ser construída, precisa de anos de estudo, maturidade e muito incentivo, moral e financeiro! Investimento!!! A vida de um cientista é cheia de pedras no caminho, com experimentos dando errado na enorme maioria das vezes! Quem já não pensou em largar a ciência e abrir uma lojinha de sapatos? Mas no sangue do cientista o DNA já vem marcado, com a curiosidade, persistência e desejo de ajudar o próximo. Se não tiver todas essas coisas juntas, vá fazer outra coisa!
Alguns aproveitaram o ano para tirar as pesquisas arquivadas na gaveta, que estavam na espera para serem publicadas, aumentando sua produtividade em 2020. Outros ficaram em casa lidando com a pandemia como podiam, como a maioria da sociedade. Uma outra parcela arregaçou as mangas e trabalhou com o sars-cov-2 e a covid-19, alguns se reinventando. Para o ano de 2021 acredito que teremos uma produtividade científica avaliada por número de artigos científicos menor para a maioria dos pesquisadores que não se envolveram com temas relacionados à pandemia, justamente em função do desarquivamento de manuscritos e falta de produção de dados novos por conta do isolamento social.
Importante ressaltar o papel claro da USP como produtora de conhecimento acerca do coronavírus e inventora de ferramentas de combate à covid-19. Essas ações só foram possíveis por conta do incentivo à pesquisa que ainda temos em São Paulo, principalmente dado pela Fapesp, agência esta que foi (e ainda está) ameaçada pelos cortes financeiros propostos pelo governo de São Paulo (PL 529 e 627). Incrível tentar entender como um governo que diz se pautar pela ciência desde o início da pandemia não seja capaz de perceber a gravidade da ação que está planejando fazer.
As epidemias e pandemias não vão parar, e aprendemos com a covid-19 que elas se alastram rapidamente e que as ações rápidas só acontecem se estivermos preparados, com anos de estudo e de incentivo às universidades e à ciência que é feita em nosso país! Foi assim em 2015 e em 2020. Precisamos de outra doença desastrosa? Bem, os cientistas já aprenderam!
Fonte: Jornal da USP
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