Às 6h da manhã dessa quinta-feira (8), a Polícia Federal bateu na porta da sede do governo do Amazonas, na zona oeste de Manaus, para cumprir um mandado de busca e apreensão no gabinete do vice-governador do Amazonas, defensor público Carlos Almeida Filho (PTB), um dos 14 alvos da segunda fase da Operação Sangria. A ação investiga crimes como fraude à licitação, desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro na compra de 28 respiradores importados por uma empresa de vinhos para tratar doentes de Covid-19 nos hospitais públicos do estado.
Carlos Almeida Filho, que também assumiu a função de secretário de Saúde nos três primeiros meses de governo Wilson Lima (PSC), seria um dos principais articuladores do esquema, segundo a Polícia Federal. “Ao longo da investigação, foi possível extrair indícios de que o vice-governador tinha ingerência e influência direta nas decisões da secretaria de saúde”, revelou o delegado Henrique Albergaria.
Dos 14 mandados, cinco foram de prisões temporárias determinadas pelo ministro Francisco Falcão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e requeridas pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo.
Para o Ministério Público Federal (MPF), as investigações apontam o governador como mandante dos ilícitos que envolvem as compras de respiradores. “Wilson Lima exercia domínio completo não apenas dos atos relativos à aquisição de respiradores para enfrentamento da pandemia, mas também das demais ações governamentais relacionadas à questão, no bojo das quais atos ilícitos teriam sido praticados”.
Wilson Lima foi eleito em 2018 com apoio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Na primeira fase da Operação Sangria, o Ministério Público Federal pediu a prisão do governador, mas o ministro Francisco Falcão, do STJ, negou alegando não haver indícios que justificassem a prisão do político e ex-apresentador de TV.
Hoje pela manhã, na segunda fase da operação, a ação da PF se estendeu à casa do vice-governador, no bairro nobre Ponta Negra, zona oeste de Manaus. Enquanto isso, o governador Wilson Lima (PSC) permaneceu em casa, segundo a Secretaria de Estado de Comunicação (Secom).
As investigações apontam que o vice-governador Carlos Almeida Filho tinha grande influência na gestão da Susam. “As provas apontam que a cúpula da Secretaria de Saúde se reportava frequentemente ao vice-governador para tratar de contratos da área de saúde, inclusive sobre pagamentos”, diz o MPF.
O acusado de ser operador
Entre os cinco presos nesta quinta-feira (8), está o capitão reformado da Polícia Militar do Amazonas e empresário, Gutemberg Leão Alencar, que transita em várias esferas das estruturas do poder no Amazonas há alguns anos. Ele foi lotado na Casa Militar e segurança pessoal do ex-governador Amazonino Mendes (Podemos) durante o segundo mandato entre 1995 e 1998, atual candidato a prefeito de Manaus. Alencar é empresário dos ramos da construção civil, vestuário, eventos e cerâmica. Foi diretor de jornais como o extinto Correio Amazonense e do Grupo Raman Neves de Comunicação, que tem o jornal Amazonas Em Tempo. Na campanha eleitoral de 2018, foi coordenador da campanha de Wilson Lima no interior do estado. Na operação Sangria, o capitão Alencar é acusado de ser o operador do esquema da compra dos respiradores superfaturados. O nome dele surgiu no caso em depoimento à PF dado por Alcineide Figueiredo Pinheiro, ex-gerente de compras da Secretaria de Saúde do Amazonas. Em 30 de junho ela afirmou que “Alencar” era o operador da negociação, indicado pelo governador Wilson Lima para “ajudar” nas compras dos respiradores, como mediador entre a Susam e os fornecedores durante a pandemia, segundo o site UOL.
Os outros presos temporários na Operação Sangria são o ex-secretário de Estado de Saúde, Rodrigo Tobias; a ex-secretária executiva de Atenção Especializada da Capital, Dayana Mejia; o engenheiro Ronald Gonçalo Caldas Santos; e o médico Luiz Carlos Avelino Júnior – marido da ex-secretária de Estado de comunicação Daniela Assayag. Os ex-secretários foram nomeados quando Wilson Lima assumiu o governo em janeiro de 2019.
Na primeira fase da Operação Sangria foram presas sete pessoas, além da ex-secretária de saúde do Amazonas, Simone Papaiz, o ex-secretário de saúde, João Paulo Marques dos Santos; o ex-secretário executivo adjunto de saúde, Perseverando da Trindade Garcia Filho; e a ex-gerente de compras da secretaria de saúde, Alcineide Figueiredo Pinheiro.
Por meio de nota, o governo do Amazonas disse que está contribuindo com a apuração dos fatos e que grande parte dos investigados já não faz mais parte da gestão de Wilson Lima.
A defesa do médico Luiz Carlos Avelino Júnior enviou nota à reportagem na qual diz que não teve acesso à íntegra da medida cautelar, que não vê razão para a prisão temporária, que Avelino colocou à disposição da polícia seu sigilo fiscal e bancário. A agência Amazônia Real não localizou os representantes dos demais investigados.
Esquema aconteceu no auge da pandemia
O primeiro caso de Covid-19 no Amazonas foi confirmado em 13 de março. Uma mulher de 39 anos, que tinha voltado de férias de Londres, na Inglaterra, apresentou sintomas da doença assim que chegou a Manaus. Em seguida, os casos do novo coronavírus começaram a avançar em todo o estado.
O sistema de saúde do Amazonas foi o primeiro do Brasil a entrar em colapso por causa da pandemia, em abril. Faltaram leitos de UTI, equipamentos e médicos para atender a população. Estima-se que em nenhum lugar do país o novo coronavírus tenha sido tão grave como em Manaus, onde a população pobre foi enterrada em vala comum. Até o momento, 4.202 pessoas morreram de Covid-19 e 144.492 foram infectadas. Nenhum dos 61 municípios do interior possui leitos de UTIs.
A aquisição dos respiradores começou a ser investigada após denúncia do site O Amazonês. Os 28 respiradores para o tratamento de pacientes com Covid-19 foram adquiridos, com dispensa de licitação, em 8 de abril através da adega de vinhos Vineria Adega pelo valor R$ 2,9 milhões, 133,67% acima do valor de mercado segundo laudo da Polícia Federal. O catalisador do que se seguiu, foi o depoimento secreto da ex-secretária executiva de Atenção Especializada da Capital, Dayana Mejia, à CPI da Saúde, que revelou fatos importantes sobre o esquema.
Em 25 de maio, após pelo menos duas medidas judiciais que suspenderam a sua instalação, a Aleam deu início à CPI da Saúde. Em seguida, o Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM) deflagrou a operação Apnéia, para investigar a compra dos equipamentos.
No dia 30 de junho, a Polícia Federal prendeu a então secretária de Saúde Simone Papaiz na primeira fase da Operação Sangria. Ela foi acusada de envolvimento na compra dos respiradores, por aderir “aos propósitos do grupo criminoso e passou a agir de modo a acobertar os crimes praticados” e por não colaborar com os órgãos fiscalizadores na apuração de irregularidades na compra dos equipamentos.
Papaiz foi exonerada em 6 de julho, junto com então secretária estadual de Comunicação, Daniela Assayag, esposa do médico Luiz Avelino, também alvo da operação. Foi nessa ocasião que todo o esquema foi exposto.
O Ministério Público Federal diz que o esquema de aquisição dos respiradores envolveu uma manobra conhecida como triangulação: “uma empresa vendeu os respiradores à adega por R$ 2,4 milhões; essa, por sua vez, repassou os equipamentos ao governo do Amazonas por R$ 2,9 milhões”. A suspeita de superfaturamento de R$ 496 mil foi detectada pela Controladoria-Geral da União.
A investigação aponta indícios de que a aquisição dos respiradores era apenas o início de outros esquemas de compra de equipamentos que seriam realizados durante a pandemia. As investigações ainda apontam práticas de peculato e pertencimento a organização criminosa.
“Esta segunda fase é um desdobramento da primeira. A partir dos elementos colhidos anteriormente, foram identificados novos agentes públicos e empresários envolvidos no esquema criminoso”, explicou o delegado Henrique Albergaria, coordenador regional do núcleo combate ao crime organizado da Polícia Federal. “Todos os meandros deste caso estão sendo analisados pela equipe de investigação”, acrescentou.
Quem são os outros quatro presos?
Luiz Avelino é casado com a ex-secretária Daniela Assayag
Segundo a Polícia Federal, as medidas cautelares, que incluem o sequestro de bens e valores dos investigados, foram determinadas pelo ministro Francisco Falcão, do STJ, e requeridas pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo.
Rodrigo Tobias de Sousa Lima: As investigações revelaram que o ex-secretário Tobias era parte importante nas fraudes. “Ele funcionava como um canalizador da alta cúpula do governo. Há indícios de participação efetiva [dele] na formalização e manipulação da compra dos respiradores e consciência do sobrepreço dos equipamentos”, disse o delegado Henrique Albergaria, da PF.
Dayane Priscila Mejia de Sousa: ex-secretária executiva de Atenção Especializada da Capital, depôs sobre o processo de compra de respiradores à CPI da Saúde, é acusada de envolvimento no esquema de fraude em licitação.
Ronald Gonçalo Caldas Santos: engenheiro clínico. No DOE de abril de 2019 ele consta como membro da Comissão de Acompanhamento do Contrato de Prestação de de Serviços da empresa Zona Norte Engenharia, Manutenção e Gestão de Serviços S.A, citada na CPI da Saúde.
Luiz Carlos Avelino Júnior: médico otorrinolaringologista, marido da ex-secretária de Estado de comunicação Daniela Assayag, e sócio da empresa Sonoar, que vendeu os respiradores para adega. É investigado por suspeita de se beneficiar do esquema de venda superfaturada dos respiradores.
Gestão turbulenta, impeachment e CPI
Wilson Lima, que começou a sua gestão com uma base governista que lhe conferia relativo conforto na Assembleia Legislativa do Amazonas, logo caiu em desgraça entre os deputados durante a pandemia. No auge da crise, a situação na saúde ficou tão caótica, que houve um pedido de intervenção federal da saúde do estado. A medida chegou a ser aprovada por 13 deputados da Aleam em 20 de abril, mas não recebeu adesão por parte do presidente Jair Bolsonaro. Depois, Lima enfrentou pelo menos três pedidos de impeachment. Um deles, apresentado pelo Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), foi aceito e chegou a ser votado, mas acabou arquivado em 6 de agosto por 12 votos a 6.
O administrador Marcellus Campêlo, primo da deputada estadual Alessandra Campêlo (MDB), assumiu interinamente a secretaria de Saúde do Amazonas, em 6 de julho, e tomou posse como titular em 31 de agosto. Na ocasião, foi anunciada uma reestruturação da pasta, que passou a se chamar Secretaria de Estado de Saúde – SES-AM, e a implantação do Programa de Modernização da Saúde Pública. A esta altura, toda a cúpula da Saúde já tinha sido exonerada e ouvida pela CPI da Saúde.
Dois dias depois, chegou ao fim a CPI da Saúde, que desde 25 de maio, ouviu dezenas de envolvidos no governo Wilson Lima. Entre as conclusões da comissão, estão “inúmeras irregularidades, negligências e fraudes por partes de agentes públicos e empresários” e “esquemas de corrupção que implicaram desvios milionários dos cofres públicos, protagonizados por empresas privadas, tais como a Sonoar, a Vineria Adega, a Norte Serviços Médicos Ltda, a Líder Serviços de Apoio a Gestão da Saúde Ltda e a Rio Negro Comércio de Produtos Médicos Hospitalares”. Estas empresas teriam sido beneficiadas pela total falta de transparência e fiscalização no uso dos recursos públicos da secretaria de saúde.
Para o deputado Serafim Corrêa (PSB), membro da CPI, a comissão elucidou os crimes envolvendo a compra dos respiradores. “Óbvio que não dispunha dos meios que a PF, o MPF, a CGU e o STJ. Eles avançaram mais ainda a partir daquilo que levantamos e entregamos à eles. A CPI teve papel importante”, disse à reportagem.
“A operação da Polícia Federal foi um desdobramento de tudo o que identificamos na CPI”, avalia o presidente da Comissão, deputado Delegado Péricles (PSL). “Elucidamos o envolvimento do marido da ex-secretária de comunicação do esquema de compra dos respiradores. Tudo o que investigado foi encaminha para Polícia Federal e resultou na operação de hoje”, garante.
“Mostramos esquemas de corrupção que todo mundo sabia que existia, mas não tinha coragem de apresentar. Identificamos e imputamos as responsabilidades a quem cometeu ilícitos na gestão da saúde”, acrescenta o delegado parlamentar.
Para Serafim Corrêa, as sucessivas operações geram constrangimento ao executivo estadual e instabilidade administrativa. “Com que cara o governador vai falar com ministros do governo federal? Ou vai andar na rua? Olhar para a imprensa? Está ficando cada vez mais complicado”, avalia ele.
Fonte: Amazônia Real
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