Por Elaíze Farias e Marizilda Cruppe - Manaus (AM) e Santarém (PA) – Do sudoeste até o extremo sul do Pará, na bacia do rio Tapajós, a fumaça de queimadas e de incêndios florestais encobre sedes de municípios e rodovias. Nas cidades de Trairão, Aveiro e Belterra, no sudoeste paraense, e Jacareacanga, no extremo sul, a atmosfera tem pouca visibilidade e o ar é sufocante, numa tóxica combinação de fumaça de queimadas em suspensão e névoa matinal. Mesmo na floresta tropical e úmida, a copa das árvores está sucumbindo não apenas às temporadas de fogo recorrentes, mas ao aumento das queimadas a cada ano e à degradação ambiental.
No dia 17 de setembro, a Amazônia Real, em parceria com a organização Amazon Watch, realizou um sobrevoo e testemunhou de cima esse cenário de ataque à floresta, às populações indígenas, aos pequenos agricultores e à biodiversidade. Foi o segundo sobrevoo realizado pela agência neste ano. O primeiro foi em Rondônia, divisa com o Amazonas. A rota do novo sobrevoo incluiu o entorno de municípios e rodovias e áreas das Florestas Nacionais (Flona) Jamanxim, Tapajós e Crepori, o Parque Nacional do Tapajós, a Área de Proteção Ambiental do Tapajós, e as Terras Indígenas Munduruku, Bragança-Murituba, Munduruku-Taquara e Indígena Sawré Muybu.
Do alto, a fumaça de queimadas encobre a degradação ambiental em avançado estágio no solo, que se completa com extensas áreas desmatadas, fazendas de pastagem e vastos pontos de garimpo ilegal. Esses problemas causam grave desequilíbrio ecológico e geram danos em cadeia: poluição de rios, agravamento das condições de saúde e conflitos sociais.
A liderança indígena Alessandra Korap Munduruku conta que o aumento do desmatamento na região do Tapajós é resultado do processo de expansão do mercado, que emergiu com toda força em 2019, com a perspectiva da construção da ferrovia Ferrogrão, para escoamento de soja e milho, e da chegada da multinacional Anglo American para atividade de mineração.
Essas grandes obras alimentam promessas de prosperidade que atraem um grande número de trabalhadores, garimpeiros e madeireiros, pressionando o interior das terras indígenas.
“Tudo o que vocês viram de cima [sobrevoo] é o que nós já vimos daqui de baixo. A gente sabe dos projetos planejados para cá, que vem do Mato Grosso até o Tapajós. Tudo o que era ilegal agora é legal”, diz Alessandra Munduruku à Amazônia Real.
Alessandra cita o Ferrogrão, as obras de portos graneleiros, hidrelétricas e garimpo como os principais vetores da devastação que se anuncia. “A mineração nas terras indígenas do médio Tapajós é bem grave, principalmente porque algumas não estão homologadas, como Sawré Muybu. Já tem balsa, maquinário grande. Outra coisa é a retirada de madeira. Em Sawré, já tem serraria, aumentou presença de madeireiro”, afirma a liderança.
O Pará é o estado brasileiro que apresenta o maior índice de queimadas em 2020, se for levado em conta apenas o bioma Amazônia. Entre 1º de janeiro e 06 de outubro, são 26.696 focos de queimadas, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe). No mesmo período de 2019, foram registrados 17.931 focos, representando um aumento de 49%. Diferente de anos como 2015 e 2016, a estiagem de 2019 e 2020 não está relacionada ao El Niño, fenômeno de aquecimento do Oceano Pacífico que provoca redução drástica de chuvas na região Norte do Brasil, interferindo na sazonalidade meteorológica.
O desmatamento também atingiu os maiores valores no Pará. Em agosto passado, o estado liderou pelo quinto mês consecutivo o ranking dos que mais desmatam. Naquele mês, o estado foi responsável por 37% de desmatamento na região, seguido de Amazonas e Acre, segundo o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), organização independente com sede em Belém. No total, a Amazônia teve um aumento de 68% nos alertas de desmatamento em agosto em relação ao mesmo período de 2019.
Como foi o sobrevoo
A decolagem do sobrevoo da equipe da Amazônia Real foi ao amanhecer do dia 17 de setembro. Na região sobrevoada, o tráfego aéreo está intensamente atrelado ao movimento dos garimpos. E até mesmo uma simples viagem precisa ser feita em discrição. A equipe da agência, ao tentar avistar a floresta, logo percebeu a névoa úmida misturada com a fumaça.
Arthur Massuda, analista de geoprocessamento, que acompanhou o sobrevoo para identificar os pontos, explica que o Médio e o Alto Tapajós compõem um mosaico de unidades de conservação e terras indígenas ocupadas por complexos garimpeiros com quilômetros de extensão, rios enlameados por rejeitos e com balsas e dragas em operação, além de áreas desmatadas com fogo sem o menor pudor em relação às fronteiras de proteção.
“Ao sobrevoarmos a Terra Indígena Munduruku, em certo momento, o piloto precisou se desviar da rota por causa da baixa visibilidade da fumaça onipresente. Por ser área garimpeira, o fluxo de aviões clandestinos é intenso e as chances de colisão são reais. Do chão aos céus, é uma região dominada”, relata o analista.
Conforme Massuda, a maioria dos focos estava presente em áreas retangulares, indicando limpeza de solo intencional. Ele diz que, embora houvesse maior ocorrência próximo das rodovias que margeiam unidades de conservação e terras indígenas, essas áreas protegidas não estavam livres da fumaça e dos focos de incêndio.
Pressão sobre terras indígenas e UCs
À pedido da Amazônia Real e da Amazon Watch, a pesquisadora Camila Ramos, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), analisou os focos de calor na região sobrevoada pela reportagem para servir de material de apoio, a partir de dados do relatório “Brazilian Amazon Fires Intensify in September”. Essa análise trabalha com dados do MAAP (Monitoring of the Andean Amazon Project), um projeto de monitoramento do desmatamento e das queimadas em tempo real da ONG Amazon Conservation Association. Camila é doutoranda do Programa de Ciências de Florestas Tropicais do Inpa.
Ela estuda sobre a dinâmica do desmatamento e do fogo na região da Amazônia Central.
Camila Ramos alerta para o aumento de grandes incêndios ou queimadas no entorno e até dentro das Terras Indígenas na bacia do rio Tapajós, particularmente as de Sawré Muybu e Munduruku, ambas habitadas por indígenas Munduruku.
Ela afirma que duas terras indígenas e mais a parte sul da cidade de Jacareacanga dobraram ou até sextuplicaram os focos de calor entre 1º de julho e 17 de setembro (período em que acontece a chamada ‘temporada do fogo’), na comparação com o mesmo período de 2019.
Segundo Camila, a situação da TI Sawré Muybu, no Médio Tapajós, é uma das mais preocupantes. Dentro do território, o número aumentou de 10 focos para 23 focos no período analisado, um crescimento de 130%. Mas quando a análise se expande para um raio de 15 quilômetros no entorno da TI, o MAAP detecta 443 focos de calor, ante os 67 do ano passado.
“Fica evidente, no caso da TI Sawré Muybu, a pressão que sofre nas bordas do seu território, com aumento de 560% de focos de calor”, aponta Camila. Os Munduruku de Sawré encontram-se em situação vulnerável, já que a TI ainda não foi homologada.
Só a parte sul do município de Jacareacanga, vizinha às TIs Munduruku e Kayabi, se compara à expansão de focos de calor no entorno da TI Sawré Muybu. Neste ano, de 1º de julho a 17 de setembro, houve um aumento de 497% em relação a igual período de 2019, passando de 203 para 1.213 focos.
“Esse aumento liga o alerta e indica um aumento da tendência de uso do fogo preocupante para essa região sul do Pará próxima do norte de Mato Grosso”, explica Camila. Conforme a pesquisadora, pode estar havendo uma tendência acentuada de pressão no entorno das TIs.
Ela também aponta para expansão acelerada das atividades de garimpo dentro e no entorno das TIs. Segundo Camila, está ocorrendo atualmente na TI Munduruku, no sentido sul para o norte, conforme detectou o MAAP.
“No mapa observado, pode-se notar cinco zonas de garimpos, localizados ao redor do rio Marupá. O avanço tem ocorrido ano a ano. A zona 1, a mais antiga, continua ativa e em expansão, enquanto a 2 iniciou-se em 2017 a oeste do rio das Tropas. Nos dois anos seguintes, os garimpeiros avançaram para a zona 3, em outra porção do mesmo rio e que ainda se encontra com grande atividade de expansão”, diz ela.
Neste ano, de maio a setembro, portanto em meio à pandemia do coronavírus, as imagens do satélite detectaram “um aumento das manchas esbranquiçadas no meio do verde da floresta, como se fossem veias abertas de destruição da floresta”, informa o relatório do MAAP.
Essas manchas representam que o garimpo avança sobre a zona 4, localizada entre o rio das tropas e o rio Cabitura (ou Cabitutu), e próxima de algumas aldeias. A zona 5, a oeste do rio das Tropas e ao norte da TI Munduruku, já tinha iniciado suas atividades em 2018, mas se acelerou em 2019 e neste ano.
“O garimpo ilegal cresce a passos largos dentro da TI Munduruku nos últimos anos, avançando sobre novas áreas a serem exploradas. Isso traz impactos aos rios, igarapés e aumento do desmatamento dentro TI”, alerta Camila.
Ela destaca ainda que, embora seja uma atividade ilegal, o garimpo não só pressiona as comunidades indígenas, como também expande seus tentáculos dentro da política. Quando encontra um governo solidário à causa, o cenário se torna assustador. No começo do ano, o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso o PL 191, que libera exploração econômica de recursos hídricos, pecuária e mineração dentro das TIs.
“Essa sinalização e expectativa de que o governo venha aprovar a mineração nas TIs aumenta o número de invasores e áreas degradadas. Esses invasores aliciam e coagem indígenas Munduruku a cooperarem e a participarem das atividades do garimpo, levando à rápida destruição da floresta”, acrescenta a pesquisadora Camila Ramos.
Segundo a liderança Alessandra Munduruku, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) nega a existência de indígenas quando autoriza que se explore os recursos naturais das terras indígenas, sem consultá-los.
“Querem vender a Amazônia com nós todos dentro. Falo nós me referindo aos indígenas, os ribeirinhos… Tem os animais, o ecossistema que depende um do outro: rio, floresta, raízes, peixes. As árvores dependem da gente. Tudo é ligado entre outro. O governo nega nossa existência. Apenas pessoas de outros estados, de outras regiões e países, têm direito de explorar e de expulsar. E por que não temos direito, já que moramos há tantos anos aqui?”, indaga.
Segundo o pesquisador Paulo Barreto, do Imazon, os três componentes que têm pressionado o desmatamento na região é o mercado de ouro e de gado, condições que possibilitam outros setores, como o de extração de madeira.
“Essa força do mercado está muito impressionante. Tem muita gente que fala: ‘ah, mas isso é o grileiro, não é o fazendeiro’. Mas está tudo ligado. O cara está lá na frente sendo grileiro, praticamente roubando terra pública porque o preço da terra está alto que ele vai ganhar porque depois vai colocar gado ou vender para alguém. Está alto porque o frigorífico está comprando com preço alto o gado, o grileiro é a ponta do agronegócio, ele faz parte dessa cadeia”, afirma Barreto.
Garimpagem e baixa fiscalização
O aumento do valor do gado, exportação para a China, asfaltamento de rodovia e a redução de fiscalização ambiental estão entre os principais agentes da nova expansão de fronteira nesta região do Pará. O componente do garimpo é incentivado pelo aumento do valor do ouro. A análise é do pesquisador Paulo Barreto.
Segundo Barreto, o preço do gado subiu 58% entre 2018 e a exportação para China, um dos principais consumidores do produto, foi um dos incentivos. O garimpo foi incentivado por um aumento de 40% no preço do ouro desde 2018. E 80% da área desmatada já está sob uso de agropecuária e pastagem.
“O governo reduziu fiscalização ambiental em 35% em 2019 em relação a 2018 e continuou menor em 2020. Bolsonaro prometeu abrir terras indígenas para mineração, energia e agropecuária. Embora ele só tenha enviado o projeto ao Congresso neste ano, a promessa, combinada com a redução da fiscalização, é suficiente para que invasores ajam. Ele também prometeu revisar áreas já reconhecidas e não criar novas. Bolsonaro editou em dezembro de 2019, uma Medida Provisória (MP) que beneficiava invasores de terras públicas. A MP caducou por meio de pressão da sociedade, mas o governo continua prometendo regularização fundiária para invasores”, diz Barreto.
Segundo o pesquisador, esses componentes favoreceram o desmatamento nos últimos dois anos. A ameaça poderia existir e o desmatamento cair se o governo aplicasse efetivamente as leis de proteção florestal. “Do lado da vulnerabilidade, a coisa vem piorando já há alguns anos. Nesse governo atual piorou mais ainda. Quando tem essa vulnerabilidade da floresta, qual é o tipo de proteção que existe? Que lei vem sendo aplicada? Uma, é de enfraquecer a lei, dar perdão, anistia. A outra, reduzir a fiscalização”, diz ele.
Para Barreto, o discurso de Bolsonaro estimula o crime, retira direitos dos indígenas e mesmo quando suas ações antiambientais são combatidas em diferentes instâncias [como Congresso Nacional ou Supremo Tribunal Federal], o efeito prático já vai estar acontecendo. “Ele vai minando ao estimular a criminalidade, porque promete que não vai haver fiscalização”, afirma.
O que diz o governo Bolsonaro
A Amazônia Real procurou o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama, a Funai e o Ministério da Defesa, este responsável pela Operação Verde Brasil 2, para saber que ações estão sendo realizadas para combater queimadas, incêndios e ilícitos nas áreas sobrevoadas.
Apenas o Ministério da Defesa respondeu, mas a nota limitou-se a dar informações institucionais e gerais sobre a área abrangida da operação, fazendo comparações territoriais com outras partes do mundo e dando informações sobre apreensão de maquinários. A nota não faz referência às áreas mencionadas nesta reportagem.
“A área da Amazônia Legal, abrangida pela Operação Verde Brasil 2, possui dimensões continentais, indo desde o estado do Acre à divisa dos Estados do Pará e Maranhão, passando pelos estados do Amazonas e Mato Grosso (cerca de 700.000 Km2), portanto, equivalente à área somada dos seguintes estados americanos: Illinois, Kentucky, Indiana, Ohio, Virgínia e Pensilvânia. Para uma operação de tais dimensões, especialmente em um momento em que o País é acusado injustamente de não cuidar da região, torna-se fundamental o concurso das Forças Armadas, pelas suas capacidades operacional e logística peculiares, essenciais para apoiar tempestivamente os esforços de todos os órgãos ambientais envolvidos”, diz trecho da nota.
A pressão sobre florestas nativas
As unidades de conservação (UC) localizadas entre as rodovias BR-163 e BR-230, no Pará, também apresentaram aumento de focos de calor no período analisado entre 1 de julho e 17 de setembro de 2019 comparado a 2020.
De acordo com Camila Ramos, as UCs que tiveram maior aumento percentual foram a Flona Tapajós (280%), Flona de Itaituba II (252%), Parna do Jamanxim (138%) e a APA do Tapajós (45%). A Flona do Jamanxim apresentou a maior quantidade em números de focos de calor nesse período em 2020, um total de 5.826 focos, e um aumento de 10% em relação a 2019.
O vice-presidente da Federação de Moradores da Flona Tapajós, Victor Fernandes, disse à Amazônia Real que nos últimos anos [especialmente a partir de 2019], a região vem sendo invadida por madeireiros. Aumentou também “pesquisadores” para fazer estudos sobre atividade de garimpo.
“Como se não bastasse, tem também a grilagem de terra, e o pessoal do agronegócio que vem a todo vapor invadindo. No entorno da Flona Tapajós, praticamente hoje já não existe mais floresta. Só existe soja, milho e arroz. Para nós que defendemos, lutamos dentro da Flona, tem sido um entrave muito grande. Muito pouco tem chegado das políticas públicas do governo para nós aqui. Graças a Deus estamos fazendo parceria com ONGs, o próprio sindicato, a gente tem sobrevivido. A gente tem sido guardião também em relação a ficar vigilante sobre a floresta nacional”, afirma.
Mas a luta dessas populações tradicionais para evitar que madeireiros, sojicultores e pecuaristas destruam a floresta tem sido difícil. O mapa territorial da Flona Tapajós vem sofrendo mudanças drásticas com a pressão do setor econômico, segundo Victor Fernandes.
“Uma outra situação que todo ano tem deixado a gente meio preocupado é a do fogo. Não porque os comunitários ou os moradores tradicionais coloquem fogo na mata. Não sabemos se são os madeireiros, pessoas que têm interesse de acabar com a floresta, coisa parecida. A gente tem de uma certa forma ajudado a combater os incêndios, então nós aqui de dentro da Flona temos ficado vigilante sobre essa situação, temos trabalhado com a brigada de incêndio, feito esse trabalho de guarnição”, relata.
A consequência da pressão externa vem causando sérios danos ambientais e na saúde das comunidades tradicionais da Flora. Segundo Victor, o veneno de agrotóxicos entra para as áreas da Flona, ameaçando a agricultura familiar dos moradores.
“Esse é o sustento da nossa família, a nossa renda; ela vem dessa agricultura familiar. A gente tem tido essa dificuldade, esse aumento da grilagem por parte do poder econômico têm nos sufocado. Tem afetado e mudado nossa vida de uma hora para outra”, afirma Victor Fernandes.
Esta reportagem foi realizada com o apoio financeiro da organização Amazon Watch.
Fonte: Amazônia Real
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