Deputadas, acadêmicas e advogadas criticaram nesta terça-feira (24), na Câmara dos Deputados, o que chamaram de omissão do Estado no que diz respeito ao aborto previsto em lei. As críticas apontam para um despreparo de hospitais e funcionários da saúde no atendimento de mulheres que buscam a interrupção da gravidez, principalmente nos casos de gestação resultante de estupro.
No Brasil, a interrupção da gravidez é permitida em três casos: de estupro, de risco de vida para a gestante e de feto anencéfalo. Nessas circunstâncias, o aborto pode ocorrer até a 22ª segunda semana de gestação e desde que o feto tenha menos de meio quilo.Cleia
Segundo as participantes de audiência pública promovida pelas comissões de Seguridade Social; e de Defesa dos Direitos da Mulher, falta justamente informar os cidadãos brasileiros – principalmente a mulher – sobre esse direito e capacitar o serviço de saúde a acolher a mulher.
“Mesmo nos três casos previstos, o atendimento pelo SUS [Sistema Único de Saúde] é insuficiente. Muitos médicos alegam objeção de consciência. Mulheres quando vão ao hospital, após uma violência sexual, são criminalizadas. É um ciclo que precisa ser interrompido”, defendeu a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), uma das parlamentares que sugeriram a audiência.
Na avaliação da representante da organização de direitos humanos Artigo 19 na audiência, Júlia Rocha, o Estado viola o direito das mulheres ao aborto legal quando não oferta informações úteis e atualizadas sobre onde conseguir o serviço e também não capacita os servidores da saúde. Dados de uma pesquisa realizada recentemente pela organização com 176 hospitais públicos de todo o País apontam que apenas 43% (76 hospitais) afirmaram realizar a interrupção da gestação nos casos previstos em lei.
“Existem dois níveis de desinformação. Um a nível do cidadão, que não está informado sobre seus próprios direitos. Isso impede que as mulheres consigam acessar de fato esse serviço. E também existe um nível de desinformação na prestação desse serviço. Ainda que a mulher esteja informada, o serviço não está”, reclamou a representante da Artigo 19.
Júlia Rocha também reclamou de a maioria dos estados brasileiros não disponibilizarem em um lugar específico, como um site na internet, as informações sobre o aborto legal nem disponibilizarem uma lista com os hospitais credenciados. Na opinião dela, todos os hospitais deveriam fornecer o serviço.
A defensora pública de São Paulo Paula Santana acrescentou que a resistência no atendimento começa já na recepção, na porta do hospital. “Se a pessoa que acolhe não sabe quais as hipóteses de aborto legal, ela não pensa sequer na privacidade que esse atendimento requer. As mulheres desistem do direito, porque na porta já são violentadas.”
Há ainda as situações em que médicos se negam a realizar aborto por motivos religiosos.
Nesses casos, disse Júlia Rocha, o hospital tem obrigação de achar outro profissional que realize o serviço. Já Paula Santana afirmou que a política tem que acontecer de forma uniforme de segunda a segunda. “Às vezes, na troca de plantão, o direito é negado à mulher que se encaixa na hipótese legal”, exemplificou a defensora.
Estupro Referindo-se aos casos de estupro, especialmente de meninas menores de 14 anos, a professora de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux afirmou que a própria gravidez nesses casos é um crime. Ela disse não ser possível que meninas sejam obrigadas a ter um filho de seu estuprador.
Citando dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a defensora Paula Santana lembrou que o Brasil registrou 66 mil casos de violência sexual em 2018, sendo 82% das vítimas do sexo feminino e 54% com idade até 13 anos, a maioria (76%) tendo sido violentada por alguém conhecido.
Diante dessa realidade, Santana defendeu a desburocratização do sistema, lembrando que não há necessidade de boletim de ocorrência nos casos de aborto por estupro. “Em 2017, foram feitos apenas 1.636 interrupções legais. Quase 70 mil violências sexuais e 1,6 mil casos de abortos legais”, lamentou.
Luciana Boiteux, por sua vez, apontou uma precariedade no atendimento da mulher estuprada e disse haver, por parte dos atendentes, uma presunção de que ela esteja mentindo para conseguir abortar. “Não podemos transformar o agente de saúde em agente policial. A mulher vai assinar um termo, assumindo sua palavra. O serviço de saúde não pode ser um método de tortura contra essas mulheres”, defendeu a professora.
A psicóloga Daniela Pedroso acrescentou que o papel do serviço de saúde não é investigativo. “Estamos ali para acolher a história daquela mulher e a realidade que ela traz para a gente. Se alguém se envolver em crime de falsidade ideológica, não é o serviço de saúde, o profissional que realizou o procedimento, mas a mulher”, disse.
Sem polêmica Para a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), o assunto sequer é polêmico. “Estamos amparadas por uma lei de 1940 [o Código Penal]. Estamos falando de pessoas que deveriam estar sendo amparadas pelo Estado. Estamos falando de meninas que estão sendo estupradas”, observou.
O debate não contou com a participação de representantes do governo federal. Talíria Petrone informou, no entanto, que deverá encaminhar aos ministérios da Saúde; e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos requerimento de informações acerca do atendimento nesses casos, do orçamento e da capacitação de profissionais.
Fonte: Agência Câmara Notícias - Reportagem – Noéli Nobre