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Paraguai deixou de receber US$ 75 bilhões com Itaipu entre 1985 e 2018, afirma estudo


Para Miguel Carter, “se você perguntar a qualquer paraguaio sobre imperialismo, eles vão falar primeiro do Brasil, não dos Estados Unidos" / Foto: Norberto Duarte/AFP

Do Brasil de Fato - Entre o fim de julho e o início de agosto deste ano, um escândalo envolvendo a hidrelétrica de Itaipu quase levou à queda do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, e de seu vice, Hugo Velázquez. A crise foi deflagrada pela assinatura de uma ata diplomática com o Brasil que previa mudanças na distribuição energética da usina.

O pacto foi assinado em maio e mantido às escondidas até 24 de julho, data em que o então presidente da Administração Nacional de Eletricidade (Ande), Pedro Ferreira, renunciou após discordar dos termos e se recusar a assinar o acordo.

Depois de sua demissão, quatro altas autoridades da administração paraguaia renunciaram aos cargos, entre elas o então chanceler Alberto Castiglioni, o embaixador do Paraguai no Brasil, Hugo Saguier, e o titular paraguaio da hidrelétrica de Itaipu, José Roberto Alderete. O acordo só foi anulado após ameaçar a permanência de Abdo Benítez em seu cargo.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e diretor do Centro para a Democracia, a Criatividade e a Inclusão Social (Demos), Miguel Carter, afirmou que os novos acontecimentos estão apenas na ponta de insatisfações antigas.

“O acordo [de maio] foi fruto de uma longa história paraguaia e brasileira em torno de Itaipu, que é a de fazer as coisas sempre no sigilo e em que diversas partes tentam ganhar vantagem. É a longa história do Brasil acertando a pauta e a agenda, e o Paraguai ficando com medo e aceitando”, afirma.

Carter foi responsável por organizar um estudo em torno da hidrelétrica que concluiu, entre outras coisas, que o Paraguai teria deixado de receber US$ 75,4 bilhões entre 1985, ano em que a hidrelétrica passou a funcionar, e 2018. No centro da questão está uma série de concessões feitas pelo Paraguai referentes à venda de sua energia ao Brasil.

Embora cada nação seja dona de 50% da energia da hidrelétrica, o Paraguai consome apenas cerca de 15% da produção. Todo o restante é vendido ao Brasil por um preço abaixo do de mercado, o que prejudica o país vizinho.

"Com esse recurso, o Paraguai poderia ter tido a chance de ser outro país. Em vez disso, ficamos subsidiando a indústria paulista, fazendo o Brasil ficar mais rico e o Paraguai perdendo riqueza energética por causa dessas cláusulas do tratado de Itaipu", argumenta.

O pesquisador afirma, ainda, que questões como essa levaram o Brasil a ser visto como um país imperialista no Paraguai. “Se você perguntar a qualquer paraguaio sobre imperialismo, eles vão falar primeiro do Brasil, não dos Estados Unidos. Vocês [brasileiros] têm um problema de império com os Estados Unidos, mas lá no Paraguai nosso império é o Brasil”.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Qual o histórico do tratado de Itaipu e como os paraguaios enxergam o pacto?

Miguel Carter: Há uma visão bastante ampla e partilhada de que o Paraguai não se saiu bem no tratado de Itaipu, assinado em 1973 entre dois regimes militares, o de Alfredo Stroessner, no Paraguai, e Emílio Garrastazu Médici, no Brasil. O pacto foi submetido à votação no Congresso paraguaio, mas era uma Casa completamente dominada pela ditadura, pelo Partido Colorado, que era o partido hegemônico na época.

O tratado é assinado, a grosso modo, sem nenhum debate, e com os seguintes termos: ele reconhece que as águas do Rio Paraná pertencem aos dois países. Então se estabelece um divisão de partes iguais entre Paraguai e Brasil. E, ao mesmo tempo, se estabeleceu que nenhum dos dois lados poderia vender a energia a um terceiro país.

Aquele que não utilizar toda a energia, deve vender ao outro país. No caso o Paraguai [vende sua parte] por não ter condição de utilizar toda a energia de Itaipu – ainda hoje não tem. Então o país é obrigado a vender – a palavra é realmente ceder – sua energia ao Brasil e se estabelece um preço que é basicamente o preço mais ligado ao custo de produção.

O estudo que eu fiz demonstra que a cláusula que obriga o Paraguai a ceder sua energia não utilizada ao Brasil a um preço que não tem nada a ver com o preço de mercado, fez o Paraguai perder a enorme oportunidade de gerar ingressos muito importantes para o desenvolvimento do país. Os paraguaios sempre souberam que não tinham recebido o valor justo pela energia exportada do Brasil, majoritariamente utilizada pela indústria de São Paulo.

Entre outros dados, o estudo mostra que o Paraguai deixou de receber US$ 75,4 bilhões de 1985 a 2018. Como se chegou a esse número e qual o impacto desse prejuízo?

O que fizemos foi uma estimativa a partir dos dados oficiais de Itaipu relativos a todos os custos relativos à geração de energia. Pegamos os custos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do mercado brasileiro, sobretudo da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dados do custo de energia do Brasil.

Entre 1985 e 2018, o Paraguai recebe, em preço de compensação, US$ 5,5 bilhões. Mas o valor adicional que teria recebido ao longo desses 34 anos teria sido US$ 75,4 bilhões. Esse valor é praticamente o dobro do Produto Interno Bruto (PIB) do ano retrasado do Paraguai. Se a gente for olhar para trás, seria uma década do PIB paraguaio de 1985 a 1994.

Esse valor, para um país pequeno e pobre como o Paraguai, é gigantesco. Eu calculei o quanto isso teria implicado na despesa pública. O Paraguai teria praticamente dobrado o orçamento público em todo esse período. E nesse mesmo tempo poderia ter dobrado o investimento em educação pública e saúde pública. [Ainda] sobrariam US$ 33,4 bilhões para sanar uma série de problemas que o Paraguai tem. Problemas de infraestrutura, problemas de conflitos de terra, pobreza etc.

Com esse recurso, o Paraguai poderia ter tido a chance de ser outro país. Em vez disso, ficamos subsidiando a indústria paulista, fazendo o Brasil ficar mais rico e o Paraguai perdendo riqueza energética por causa dessas cláusulas do tratado de Itaipu.

Em 2009, Fernando Lugo e Luiz Inácio Lula da Silva, então presidentes de Paraguai e Brasil, fizeram um acordo no qual o Estado brasileiro aceitou pagar mais pela energia paraguaia. Foi um bom acordo?

É o que de melhor foi feito, sobretudo pensando no lado do Paraguai, relacionado à Itaipu. Pela primeira vez um governo que não era do Partido Colorado – sigla conservadora, chegou ao poder. Se tratou de uma coligação entre o presidente Fernando Lugo, mais à esquerda, e o Partido Liberal, uma espécie de PMDB no Brasil – coligação similar a que se manteve nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no tempo de Lula e Dilma.

Como parte da campanha eleitoral, eles começaram a questionar o tratado de Itaipu e a promover uma renegociação e conquistaram alguns pontos importantes para o Paraguai. Um ficou no papel: a ideia de que o Paraguai poderia comercializar a sua energia diretamente no mercado brasileiro, o que não foi feito.

Também ficou [somente no papel] a possibilidade do Paraguai vender a energia a outros países do mercado regional. E houve um incremento na compensação: os valores irrisoriamente baixos que eram pagos foram triplicados.

Ainda assim essa quantia é muito aquém do valor de mercado. Mas implicou um crescimento anual de US$ 120 milhões a US$ 360 milhões, o que de fato foi importante. Foi utilizado para financiar a educação no Paraguai e as pequenas estradas no interior do país.

Mesmo essa pequena soma no valor da energia foi importante para o Paraguai e foi um sinal de que o governo do Brasil estava disposto a ouvir.

De lá para cá o governo brasileiro mudou e agora quem comanda o país é o presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita. Isso pode mudar o rumo das negociações envolvendo Itaipu?

É evidente que o governo Bolsonaro não é de muito diálogo, nem internamente, inclusive com dificuldades de dialogar com o próprio Congresso Nacional. Imagina então com um país pequeno.

O Paraguai tem que ter uma estratégia e um posicionamento que não seja dependente do humor do líder brasileiro. É preciso que seja adotada uma posição em favor da justiça, por um tratado que seja equânime não só no papel, mas em termos efetivos, reais.

Nós temos declarações de princípio de igualdade no tratado de Itaipu, mas a realidade é que se contabilizarmos o valor monetário da energia de Itaipu, o Brasil ficou com 86% do valor e o Paraguai com 14%, sendo que propriedade é de partes iguais.

Países pequenos não podem sentar para negociar com um país grande com a mesma lógica deles. Porque serão engolidos. A primeira coisa que um país pequeno tem que fazer é estabelecer sua agenda.

O Paraguai tem que ter uma agenda própria, independente de quem seja o presidente do Brasil. E essa agenda tem que ser socializada, comunicada à população, de modo a criar um movimento cívico, nacional abrangente que congregue esquerda e direita, porque o que acontece é de interesse nacional. O governo atual do Paraguai é muito medroso e não tem esse espírito de mobilização popular, mobilização cidadã.

Nesse sentido, há entre os paraguaios uma impressão de que o Brasil se porta como um país imperialistas ao tratar de assuntos relacionados a Itaipu?

Não só a Itaipu. Se você perguntar a qualquer paraguaio sobre imperialismo, eles vão falar primeiro do Brasil, não dos Estados Unidos. Vocês [brasileiros] têm um problema de império com os Estados Unidos, mas lá no Paraguai nosso império é o Brasil.

Cerca de 25% das terras férteis do Paraguai estão nas mãos dos brasileiros. A área agrícola que deveria ser território de segurança nacional na divisa com o Brasil, em grande medida está na mão de brasileiros.

Isso do lado brasileiro seria inadmissível, que os paraguaios comprassem todas as terras em região de fronteira. Os argentinos não permitem, os uruguaios não permitem. Em toda a área de fronteira dentro do Paraguai, o idioma principal é o português e a moeda principal é o real.

Todos os grandes estragos criminais que tivemos nos últimos anos vieram das organizações criminosas do Brasil. Grupos que se instalam no território paraguaio se aproveitam que o Estado lá é mais fraco e fazem estragos de todo o tipo. O Brasil exporta todos os grandes grupos criminosos sofisticados que utilizam o território paraguaio.

É um problema com o Brasil. E Itaipu é só uma parte do problema maior que nós temos. O Paraguai tem que assumir uma postura de defesa da sua soberania com muita maturidade. O problema não é com o povo brasileiro. O povo não está vinculado a essas coisas. De fato, eles não sabem nada do que aconteceu no tratado de Itaipu, que foi feito pelas costas dos brasileiros.

Então precisamos ter um diálogo são e gerar empatia. Se muitos dos brasileiros soubessem o que está acontecendo, não ficariam contentes com essa situação e não se sentiriam orgulhosos com o país, que fica explorando a energia de uma nação menor e mais pobre, que é o Paraguai.

Em maio deste ano, os governos do Brasil e do Paraguai fizeram, de forma sigilosa, um acordo que privilegiava ainda mais o Brasil. O que achou do pacto e qual a reação dos paraguaios?

O acordo foi fruto de uma longa história paraguaia e brasileira em torno de Itaipu, que é de fazer as coisas sempre no sigilo e em que diversas partes tentam ganhar vantagem. É a longa história do Brasil acertando a pauta e a agenda, e o Paraguai ficando com medo e aceitando.

A imprensa tem exercido um papel muito ativo em expor os elementos desse escândalo e o presidente ficou muito enfraquecido. Nem havia acabado o primeiro ano e ele já tem uma debilidade muito grande. Mais de 70% da população desaprova sua atuação e ele está dependendo do seu rival no Partido Colorado – grupo muito dividido internamente – para não cair via impeachment.

Foi algo que demonstrou que no Paraguai o tema de Itaipu é sensível. Mexe com sua identidade nacional. É uma obra faraônica que para um país pequeno como o Paraguai tem muita importância. E o povo percebe que é um dos elementos simbólicos mais importantes, que mostra o quanto o Brasil tem se apropriado das riquezas do Paraguai.

Se a esquerda e os liberais se unirem de novo, há boas chances de ganharem as próximas eleições e [os governistas] estão cientes disso. Então o custo político que Stroessner não teve em nenhum momento em 1973, hoje existe. E pode haver uma virada de governo em função da disputa de Itaipu no Paraguai.

*Colaborou Juca Guimarães.

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